quarta-feira, 31 de maio de 2017

Avenida Mauá

Relembrando a graduação



A Travessia da Avenida Mauá


A travessia da Av. Mauá (Vindo da Praça da Alfândega em direção ao Cais do Porto) é, sem nenhuma dúvida, “uma manobra bastante arriscada”. Neste local o trânsito de veículos é muito grande e a velocidade média dos automóveis, caminhões e coletivos também é alta em função da avenida ser extensa (uma grande reta),  larga (com 3 faixas de rolagem) e não existir nenhum dispositivo inibidor da velocidade no local (com exceção do semáforo). Existe uma faixa de segurança e uma semáforo quase em frente a entrada principal do Caís do Porto, o que, teoricamente, facilitaria a travessia dos pedestres, no entanto, nem sempre é bem assim.
Os motoristas costumam aproveitar ao máximo o tempo destinado para a sua travessia, transitando no momento em que o sinal fica no amarelo e até nos primeiros instantes em que o sinal aponta a cor vermelha, ou seja, os condutores de veículos automotores não respeitam o sinal que propõe a sua parada e permite a passagem para o pedestre.  Portanto, o fato de o sinal estar apontando a travessia para o pedestre (vermelho para os motoristas) não representa uma situação de travessia segura para este.
 Uma outra situação que representa bastante risco para o transeunte que decide atravessar a Avenida é aquela em que o sinal muda quando o pedestre encontra-se no meio ou quase no final da travessia da Avenida. Neste caso, a pessoa precisa correr ou pular a fim de que não sege apanhada por um veículo, pois observei que os motoristas decidem aproveitar ao máximo todos os segundos destinados a sua travessia, não abrindo mão assim dos primeiros instantes da exposição do sinal verde, mesmo que o pedestre ainda se encontre no meio da sua travessia.
Em resumo, atravessar uma avenida no centro da cidade, como a Avenida Mauá, não é uma tarefa muito fácil e nem muito tranqüila, pois exige do pedestre bastante atenção e perspicácia para perceber o momento exato que a travessia pode ser realizada sem nenhum risco para a sua segurança pessoal. Esta situação pode ser bem mais problemática para os idosos, crianças, gestantes e deficientes físicos por razoes óbvias.




O . B . S .:  Este texto acima exposto é parte de uma descrição maior que realizei e se refere aos aspectos que observei e experimentei nas primeiras atividades de campo no Cais do Porto. A pesquisa denominada “Estudo Antropológico de um Espaço Urbano Singular: Cais do Porto de Porto Alegre (ou da cidade que tem porto até no nome)” foi apresentada no X Salão de Iniciação Científica da UFRGS e pode ser resumida da seguinte forma:
O Cais do Porto de Porto Alegre já foi a principal porta de entrada para a cidade. Viveu momentos de intensa atividade comercial, fluvial e social. Atualmente o cenário, a dinâmica social e a organização espacial naquele local demonstram que o Cais vive um outro período da sua história. Várias transformações ali ocorreram e outras tantas virão a ocorrer, diante de algumas propostas de reestruturação e reorganização arquitetônicas, urbanísticas e comerciais do atual Cais do Porto de Porto Alegre. Neste estudo, abordamos o  Cais do Porto na perspectiva do estudo de memória e itinerários dos grupos urbanos em Porto Alegre,  através  do método etnográfico, incorporando as técnicas de observação direta e participante e pesquisa direta e não participante, complementadas com a realização de entrevistas e com a produção de imagens fotográficas e  iconográficas. O principal objetivo é a análise e a compreensão da dinâmica social e da organização físico-espacial deste espaço urbano, diante das suas inúmeras mudanças e reestruturações que ali ocorreram, bem como das que brevemente virão a ocorrer. Neste sentido, aponta-se para o fato de que o reordenamento e as remodelações propostos para o Cais do Porto da Cidade de  Porto Alegre são produtos de um processo de mudanças históricas, econômicas e sociais que extrapolam as fronteiras citadinas locais, estando inseridas no corpo de uma cosmovisão globalizada e globalizante (complexa e moderna) que vem determinando a organização e reorganização dos grandes espaços urbanos contemporâneos.
Atualmente o meu objetivo é realizar algumas reestruturações nesta proposta de pesquisa aqui citada, retomando avanços teóricos e metodológicos conquistados no último período de atividade acadêmica, a fim de desenvolver as atividades de investigação científica solicitada pelo PPGAS / IFCH / UFRGS.

Gilberto Freyre

Casa Grande e Senzala

As obras de Gilberto Freyre analisadas na Disciplina Antropologia IV, em especial Casa Grande e Senzala, trouxeram um importante enriquecimento do nosso conhecimento em antropologia, bem como ampliaram a nossa perspectiva de análise sobre a formação da cultura brasileira.
Nas três obras propostas para leitura (Casa Grande e Senzala; Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso), percebemos que, de um modo geral existe uma temática que permeia (ou amarra) ambas as obras citadas: a sociedade patriarcal brasileira. Ou seja, Freyre enfatiza ( o tempo todo) o aspecto do patrimonialismo, com todos os seus desdobramentos, na sociedade brasileira desde o seu início até meados do século XX. Dito de outra forma, poderíamos falar que a “estrutura patriarcal”, enquanto um modelo de relações sociais, marca a cultura brasileira como um todo. Portanto, segundo Gilberto Freyre, existe uma estrutura patriarcal que marca a cultura brasileira que tem muitas diferenças, mas o que amarra as diferenças é o modelo das relações sociais que se implanta em todo o Brasil e dessa maneira está garantida a unidade. Este modelo de relações sociais (família patriarcal) tem características peculiares: rígida hierarquia, família extensa, ...
De certa forma, poderíamos afirmar que G. Freyre tentou “compreender a sociedade brasileira no seu sentido existencial”, dado a sua perspectiva transdisciplinar.
Para esta prova, nos deteremos mais enfaticamente sobre “Casa Grande e Senzala”, pois foi a obra que mais trabalhos durante as aulas expositivas e leituras individuais. Portanto, é com base nesta obra que tecemos as seguintes considerações:
O Brasil, como todos os países da América, é um pais novo, em fase de construção. Emergiu a pouco tempo, se formando a partir do século XVI, XVII, XVIII, XIX. Assim sendo, alguns autores (pesquisadores, intelectuais, etc.) tiveram a preocupação de desenvolver o tema da identidade social brasileira, muitas vezes, comparando-a com outras identidades nacionais e outras culturas. Freyre, desenvolve, com maestria e de uma forma muito peculiar, este intento. Ele afirma que aqui tudo era desequilíbrio, grandes excessos frente a grandes deficiências. Dificilmente existia um meio termo nas coisas encontradas no Brasil. Por exemplo: se por um lado, encontrávamos excesso de fertilidade em algumas regiões (ou áreas) brasileiras, por outro lado, encontrávamos imensa pobreza e dificuldades em outras regiões (e / ou área) brasileiras. Poderíamos assim falar de uma “terra dos contrastes”.
Gilberto F. fala de um clima colonial marcado pelo negativismo, afirmando que os portugueses foram superiores aos espanhóis e holandeses. Neste sentido, se comparado a outros autores, ele faz uma inversão valorativa, quando destaca a importância e as qualidades dos portugueses no processo de colonização do Brasil. Algo semelhante acontece quando Freyre se refere ao negro, pois este autor “confere um estatuto de dignidade que nenhum outro escritor havia concedido até então”. Ele considerava os negros como fundadores desta obra criadora e original que foi o Brasil.
Com base na leitura de “Gilberto Freyre na Universidade de Brasília: Conferências e Comentários de um Simpósio Internacional realizado de 13 a 17 de outubro de 1980. ...”, destacaríamos que “uma coisa chama a atenção em todos os livros de Gilberto Freyre, desde  Casa Grande e Senzala até Dona Sinhá e o Filho Padre: a vontade persistente e por toda parte afirmada de encontrar uma linguagem que torne comunicável o não dito da vida coletiva – as permutas, as relações existenciais entre os grupos, as classes, as etnias, as famílias, os indivíduos, domínio do que deveria ser uma psicologia social que se desligaria das enumerações quantitativas para investir a trama viva que os homens estabelecem entre eles e cuja linguagem comum só traduz imperfeitamente a diversidade ou a riqueza (...)”.
Segundo alguns observadores, a característica fundamental de sua obra, é a sua fidelidade ao pensar sociológico e antropológico: “É sua pertinácia em pensar o homem, a sociedade e a cultura, a partir do homem, da sociedade e da cultura, a partir do nosso homem e da nossa realidade social e cultural.”
De um modo geral, a mentalidade com que Gilberto Freyre partiu para a longa elaboração da estupenda trilogia que se estende de Casa Grande & Senzala  até Ordem e Progresso caberia numa etiqueta: Gilberto Freyre era o mais completo anti-Rui Barbosa. Ou seja, Ciência social e literatura moderna contra o judicismo parnasiano. Região e Tradição contra o abstracionismo histórico e social do nosso progressismo republicano.

Além das questões teóricas aqui elencadas (e as não elencadas), gostaríamos de destacar que as “elucubrações” de cunho mais epistemológico e filosóficos levantadas e propostas pelo professor em sala de aula enriqueceram  sobremaneira o nosso aprendizado. As discussões sobre o teor e a relevância das construções (literárias X acadêmicas, técnicas X tecnicista, etc.), sobre a “realidade” ( “A realidade em si não existe”.) ultrapassaram as obras analisadas e nos possibilitaram ótimos momentos de reflexão e análise no campo das ciências sociais e / ou antropológicas.

domingo, 28 de maio de 2017

Relembrando o curso de graduação

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Disciplina: Pesquisa III - Métodos Qualitativos
Semestre: 1997/II











-    ESTUDO  ANTROPOLÓGICO  SOBRE  A  CONSTRUÇÃO  DAS  INDIVIDUALIDADES,  TRAJETÓRIAS  E  ITINERANÇAS  DE  UM  GRUPO  DE    “FLANELAS”   DA  CIDADE  DE  PORTO  ALEGRE   -











Aluno: JAQUES XAVIER JACOMINI
Matrícula: 1409/92.7





SUMÁRIO



Introdução .......................................................................................................................  04


1.       Organização do Espaço: uma reflexão sobre o desenvolvimento da cidade
      de Porto Alegre, através da análise do traçado das ruas e a relação desta
      organização com o trabalho dos flanelas ..................................................................  06

2.   Mapeando o campo pesquisado .................................................................................  12

3.   Descrevendo o principal ator social em questão: “O Flanela” ...................................  16


Conclusão ......................................................................................................................... 22


Bibliografia .....................................................................................................................  25


Anexos ............................................................................................................................  26





INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe estudar a atuação de um novo ator social típico das cidades urbanas contemporâneas, o guardador de carros comumente denominado de “flanela”. Percebendo-o como integrante de toda uma dinâmica citadina moderna, propomos contextualizá-lo dentro de uma ambiente histórico e espacial recortados por esta pesquisa.
Para a realização da pesquisa de campo, optamos Por entrevistar os “flanelas” que atuam nas ruas que circundam a Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Avenida Osvaldo Aranha, Rua Engenheiro Luís Englert e Avenida Paulo Gama. Esta opção aconteceu em função de percebermos que neste quadrilátero estão atuando um grupo de “flanelas” com algumas características muito semelhantes, fato que proporcionou tomá-los como um grupo definido dentre os vários outros tipos de “flanelas” que atuam na cidade.
O trabalho está estruturado em três capítulos, além da introdução, conclusão bibliografia e anexos. No primeiro capítulo - Organização do Espaço Urbano: uma reflexão sobre o desenvolvimento da cidade de Porto Alegre, através da análise do traçado das ruas e a relação desta organização com o trabalho dos “flanelas” - realizamos um levantamento histórico-geográfico que procura demonstrar a relação entre o desenvolvimento urbano da cidade com a atuação profissional dos “flanelas”. Para isso, usando, além do texto, de recursos iconográficos, tentamos demonstrar a importância de tentar perceber a evolução dos espaços urbanos, bem como a sua organização e ocupação, a partir da análise dos traçados das ruas, quando se estuda atores sociais urbanos contemporâneos como os “flanelas”. Como o nosso objetivo central não é histórico e sim antropológico,  realizamos esta incursão mais historiográfica apenas para introduzir o nosso tema de debate em um contexto maior da cidade de Porto Alegre, universo desta pesquisa.
No segundo capítulo - Mapeando o Campo Pesquisado - ,  vamos detalhar os aspectos característicos das ruas e dos espaços que formam o quadrilátero geo-espacial privilegiados para esta monografia. Explicamos, também os principais aspectos que marcam a divisão dos espaços de trabalho dos “flanelas”, bem como as suas noções de público e privado.
No terceiro e último capítulo - Descrevendo o Principal Ator Social em Questão: “O Flanela” - inicialmente, passamos a explicar alguns aspectos que definiram os rumos desta pesquisa, para entrarmos no sustentáculo desta investigação antropológica, ou seja, a reconstrução do “flanela”, enquanto ator social urbano contemporâneo. Através da utilização do “flanela médio”, trazemos para esta monografia as principais constatações, observações e levantamentos realizados na pesquisa de campo, a fim de dizer quem é, como atua e como se organiza e se estrutura este ator social.
Na conclusão, tentamos rearticular todas as informações trazidas nos capítulos anteriores, inserir novas questões e propor algumas idéias para este debate que entendemos como extremamente rico e complexo. Sendo assim, as conclusões são definidas por um trabalho que, em sendo experimental e ocasional, não permitem maiores aprofundamentos teórico-analíticos sobre o tema estudado.
Para a metodologia do trabalho de campo, utilizamos as principais técnicas do método etnográfico, como a observação participante e não-participante, realização de entrevistas com o uso de gravador, análise de contexto do campo pesquisado e análise de conteúdo de documentos históricos, reportagens de jornais e revistas. Para a parte teórico-metodológica foram usados especialmente os textos discutidos na disciplina durante o semestre e outros pesquisados pela intuição intelectual dos pesquisadores.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Etnografia

1
ETNOGRAFIA DE RUA: ESTUDO DE ANTROPOLOGIA URBANA

Walter Benjamin (1892-1940)1 inspirou-se na obra de Charles Baudelaire (1821-1867)2, e
de Marcel Proust (1871-1922)3 para falar de um estado de ser e estar no mundo ao refletir sobre
seus deslocamentos nas cidades de Berlim ou Paris, a partir de um "trabalho" da memória afetiva e
do pensar a «si-mesmo»4 na paisagem urbana.
O personagem baudelairiano, o flâneur, caminha na cidade: um percurso sem
compromissos, sem destino fixo. O estado de alma deste personagem-tipo é de indiferença, mas
seus passos traçam uma trajetória, um itinerário que concebe a cidade, o movimento urbano, a
massa efêmera, o processo de civilização. Logo, esta não é uma caminhada inocente. A cidade é
estrutura e relações sociais, economia e mercado; é política, estética e poesia. A cidade é
igualmente tensão, anonimato, indiferença, desprezo, agonia, crise e violência.
Assim, a cidade do andarilho tem uma história, nem a melhor nem a pior do mundo,
simplesmente histórias que configuram referências práticas e simbólicas em que se reconhece ou
se constrange nas ruas que perambula, lugares que conhece ou desconhece, espaços que gosta ou
desgosta, contextos que lhe atraem ou passam desapercebidos. Objetos, eventos não verbais ou
verbais, ruídos ou matérias atiram-lhe a atenção sensorial que delineia seu trajeto, seus atos. A
cidade acolhe seus passos, e ela passa a existir na existência deste que vive, na instância de seu
itinerário, um traçado que encobre um sentido, algo que será desvendado ao seu final. Espaços,
cheiros, barulhos, pessoas, objetos e naturezas que o caminhante experiencia em sua itinerância,
não sem figuras pré-concebidas. Sua caminhada é de natureza egocêntrica, funcional, mas
também poética, fabulatória e afetiva, e por que não dizer, uma caminhada cosmológica como os
jogos de memória que os tempos reencontrados proustinianos encenam.
Walter Benjamin, em seu texto Sur quelques thèmes baudelairiens (Paris, 1939), lembra
que a multidão metropolitana na formação do mundo industrial despertava medo, repugnância e
horror naqueles que a viam pela primeira vez. Da mesma forma, o impacto das transformações
1 Referimo-nos principalmente a Das Passagen-Werk, escrito em 1939 à Paris e publicado em 1982.
2 Referimo-nos basicamente aos trabalhos Le spleen de Paris e Tableaux parisiens.
3 Referimo-nos sobretudo a A la recherche du temps perdu, 1954.
4 Ricoeur, 1996.
2
urbanas, tão bem tratadas no conjunto de autores que de modo geral são reunidos na
denominação Escola de Chicago, irá inspirar uma geração de antropólogos que privilegia, desde
então (anos 1930), o tema do viver na cidade como cenário primordial de análise das mudanças e
transformações.
Sob a ótica destes autores, a vida citadina é, portanto, agitada, vertiginosa mesmo, ou
monótona e repetitiva, dependendo da adesão ou não dos seus habitantes aos tempos e espaços
vividos, ritmados pelos movimentos incessantes das imagens de cidade que habitam seus
pensamentos em constante mutação. Descrever a cidade, sob um tal ponto de vista, é conhecê-la
como locus de interações sociais e trajetórias singulares de grupos e/ou indivíduos cujas rotinas
estão referidas a uma tradição cultural que as transcende. Conhecer uma cidade é, assim, não só
apropriar-se de parte de um conhecimento do mundo, ou seja, os saberes e fazeres dos habitantes e
o que conheço desta experiência de pesquisa junto a eles, quanto desvendar o conhecimento na
busca de situar meu próprio ser em relação ao ser do Outro na cidade.
Inspiradas nas obras científicas5 e literárias6 sobre o "passear e caminhar", a idéia de
desenvolver etnografias na rua nasceu com a proposta de projeto de pesquisa7 intitulado «Estudo
antropológico de itinerários urbanos, memória coletiva e formas de sociabilidade no mundo
urbano contemporâneo». Como pesquisadoras e, desenvolvendo a atividade de formar bolsistas
de iniciação científica ao método antropológico, propomos ao aluno tecer os seus próprios
percursos etnográficos na cidade de Porto Alegre, contexto de uma investigação antropológica
sobre a dinâmica das interações cotidianas e representações sociais “na” e “da” cidade. No
decorrer desta experiência etnográfica na rua, no bairro, na cidade, a introdução de instrumentos
audiovisuais como a câmera fotográfica e/ou a câmera de vídeo, passam a fazer parte do seu olhar
e atitude de coleta de dados de pesquisa: o exercício de etnografia de rua, inclui então, "a câmera
na mão".8
5 Referimo-nos entre outros à Claude Lévi-Strauss, Colette Pétonnet, Pierre Sansot.
6 Citamos igualmente aqui as obras literárias de Henri Beyle Stendhal, Georges Perec, Italo Calvino e Ernest
Hemingway.
7 Projeto integrado Cnpq desenvolvido no Programa de pós-graduação em Antropologia Social na UFRGS, desde
1997, e que alimenta com dados de pesquisa o projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais, por nos coordenado, no
âmbito do PPGAS/UFRGS, sediado no ILEA/UFRGS).
8 Citamos como exemplos os seguintes trabalhos:
ABREU DA SILVEIRA, Flávio. “A poética do vivido: uma etnografia do cotidiano na Cidade Baixa/POA/RS”. In:
Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000; BUAES,
Aline Greff. “Etnografia de uma catástrofe. Estudo de antropologia urbana e visual sobre os desafios da natureza e a
sobrevivência como modo de vida entre moradores de Águas Claras, Viamão”. In: : Iluminuras: Série do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Pibic/CNPq- UFRGS; COCCARO,
3
A etnografia consiste em descrever práticas e saberes de sujeitos e grupos sociais a partir
de técnicas como observação e conversações, desenvolvidas no contexto de uma pesquisa.
Interagindo-se com o Outro, olha-se, isto é, "ordena-se o visível, organiza-se a experiência"
conforme propõe Régis Debray9. O etnógrafo descreve, tradicionalmente em diários, relatos ou
notas de campo, seus pensamentos ao agir no tempo e espaço histórico do Outro-observado,
delineando as formas que revestem a vida coletiva no meio urbano. A etnografia de rua, aqui, é
um deslocamento em sua própria cidade, o que significa dizer, dentro de uma proposta
benjaminiana, que ela afirma uma preocupação com a pesquisa antropológica a partir do
paradigma estético10 na interpretação das figurações da vida social na cidade. Um investimento
que contempla uma reciprocidade cognitiva como uma das fontes de investigação, a própria
retórica analítica do pesquisador em seu diálogo com o seu objeto de pesquisa, a cidade e seus
habitantes. Uma vez que tal retórica é portadora de tensões entre uma tradição de pensamento
científico e as representações coletivas próprias que a cidade coloca em cena, o pesquisador
constrói o seu conhecimento da vida urbana na e pela imagem que ele com-partilha, ou não, com
os indivíduos e/ou grupos sociais por ele investigados.
Luciane. “As donas da praça: estudo antropológico de formas de sociabilidade na praça da matriz”. In: Iluminuras:
Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cnpq 1997/1999;
DEVOS, Rafael. “Da arte de dizer: prá vê como a vida reserva tanta coisa prá gente”. In: Iluminuras: Série do
Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000. Bic Cnpq 1998/2000; JACOMINI,
Jacques Xavier. “Estudo antropológico de um espaço urbano singular, o cais do porto da cidade de Porto Alegre (ou
da cidade que tem porto até no nome).” In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre:
BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cnpq 19971999; MELLO MERCIO, Rodrigo. “Moinhos de Vento: .Tão longe tão
perto... , quando a exclusão social se traveste em constrangimento, o vizinho não reconhecido. In: Iluminuras: Série
do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic UFRGS/CNPq 2000;
MYLIUS, Leandra. "Significações do viver na cidade: Um percurso afetivo e um olhar lógico, descrição de uma
etnografia de rua na Osvaldo Aranha, Bairro Bonfim em Porto Alegre/RS”. In: Iluminuras: Série do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cnpq 1999/2001; PINHEIRO
MACHADO, Rosana. “Estudo antropológico das formas de sociabilidade do centro de Porto Alegre: Vida de
Camelô”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000.
Bic Fapergs 1999/2001; RAMALHO MARQUES, Olavo. “A cidade e o tempo: as transformações no cenário urbano
em Porto Alegre”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV,
PPGAS/UFRGS, 2000. Bic UFRGS/Cnpq 1999/2001; RILLO, Sandro Belloli. “A cidade e os seus riscos: o viver de
deficientes visuais em Porto Alegre”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre:
BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Fapergs; RODOLPHO, Patrícia. “Encontrando imagens na e da Rua da Praia:
problemas e descobertas de uma etnografia urbana”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais.
Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000. Bit Cnpq 1997/1999; SANTOS, João de los. “Ruinas e tragédia: um
estudo sobre temporalidades em Porto Alegre.” In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Fapergs.
9 "L'image tire son sens du regard, comme l'écrit de la lecture, et ce sens n'est pas spéculatif mais pratique". Segundo
Debray, 1992: 56.
10 Lembramos aqui o trabalho de Michel Maffesoli, 1985.
4
A pretensão de aprofundar uma prática de “etnografia de rua” para o caso da pesquisa em
Porto Alegre, ou talvez fosse melhor dizer etnografia «na» rua, não se limita apenas aos
comentários de Walter Benjamin. A proposta singular de observation flottante, como Colette
Pétonnet11 denominou o exercício de observação de pesquisa na rua, encontra em nós, uma
adesão de estilo pela forma como pensamos, no referido projeto, o tema da etnografia da
duração12 a partir da descrição etnográfica dos itinerários dos grupos urbanos na cidade.
Segundo advogamos na pesquisa sobre memória coletiva, narrativas e formas de
sociabilidade no mundo contemporâneo, a técnica de etnografia de rua consiste na exploração dos
espaços urbanos a serem investigados através de caminhadas «sem destino fixo» nos seus
territórios. A intenção não se limita, portanto, apenas a retornar o olhar do pesquisador para a sua
cidade por meios de processos de reinvenção/reencantamento de seus espaços cotidianos, mas
capacitá-lo às exigências de rigor nas observações etnográficas ao longo de ações que envolvem
deslocamentos constantes no cenário da vida urbana.
Postulando uma carta de Porto Alegre, bairros, ruas, praças e esquinas
Tornar-se «um» com os ritmos urbanos é perder-se no meio da multidão, se deixar possuir
por alguma esquina, fundir-se nos encontros fortuitos, mas é também localizar-se nas conversas
rápidas dos habitantes locais, registrar piscadelas descompromissadas dos passantes, rabiscar
apressadamente um desenho destas experiências no seu bloco de notas, «bater» algumas fotos,
gravar algumas cenas «estando lá». Desenhos, croquis, anotações, fotos, vídeos etc. No dizer
bachelardiano, para se praticar uma boa etnografia de rua o pesquisador precisa aprender a
pertencer a este território como se ele fosse sua morada, lugar de intimidade e acomodação
afetiva, através dos devaneios do repouso13.
Uma etnografia de rua propõe ao antropólogo, portanto, o desafio de experienciar a
ambiência das cidades como a de uma «morada de ruas» cujos caminhos, ruídos, cheiros e cores
a percorrer sugerem, sem cessar, direções e sentidos desenhados pelo próprio movimento dos
11 Pétonnet, 1982.
12 Eckert e Rocha, 2000: pp. 19-40.
13 Bachelard, 1989.
5
pedestres e dos carros que nos conduzem a certos lugares, cenários, paisagens, em detrimento de
outros.
Deslocamentos marcados por uma forma de apropriação dinâmica da vida citadina, mas
cuja apreensão pauta-se pela freqüência sistemática do etnógrafo a uma rua ou uma avenida, um
bairro ou uma esquina, etc.. Neste sentido a etnografia “na” rua consiste no desenvolvimento da
observação sistemática de uma rua e/ou das ruas de um bairro e da descrição etnográfica dos
cenários, dos personagens que conformam a rotina da rua e bairro, dos imprevistos, das situações
de constrangimento, de tensão e conflito, de entrevistas com habitués e moradores, buscando as
significações sobre o viver o dia-a-dia na cidade.
Fruto de uma adesão irrestrita do etnógrafo a uma ambiência urbana, escolha movida por
amor ou ódio, à primeira vista ou não, pouco importa, a etnografia de rua, por insistência
recorrente à poética do andarilho, ao explorar/inventariar o mundo na instabilidade do seu
movimento, descobre um patrimônio intangível de formas que tecem as interações sociais num
lugar. Assim, o ato simples de andar torna-se estratégia para igualmente interagir com a
população com as quais cruzamos nas ruas. Habitués, freqüentadores, ou simples passantes, todos
eles convidam o etnógrafo a perfilar personagens, descrever ações e estilos de vida a partir de
suas performances cotidianas. E todos são bons momentos para se re-traçar os cenários onde
transcorrem suas histórias de vida e, a partir deles, delinear as ambiências das inúmeras
províncias de significados que abrigam os territórios de uma cidade.
Através da técnica da etnografia de rua, pode-se argumentar, o antropólogo observa a
cidade como objeto temporal, lugar de trajetos e percursos sobrepostos, urdidos numa trama de
ações cotidianas. Percorrer as paisagens que conformam um território, seguir os itinerários dos
habitantes, reconhecer os trajetos, interrogar-se sobre os espaços evitados , é evocar as origens do
próprio movimento temporal desta paisagem urbana no espaço.
A cidade torna-se, assim, aos olhos do etnógrafo, um território fluído e fugaz em alusão "a
unidade de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos
formam num lugar supostamente sincrônico ou acrônico".14
Mas para se apreender a cidade como matéria moldada pelas trajetórias humanas, e não
apenas como mero traçado do deslocamento indiferente de um corpo no espaço, o antropólogo
precisa recompor os traços aí deixados por homens e mulheres. Uma etnografia de rua não se
14 De Certeau. 1984.
6
sustenta como prática antropológica de investigação sem contemplar, desde seu interior, uma
reflexão sobre o forte componente narrativo que encerra os deslocamentos humanos capaz de
metamorfosear «a articulação temporal dos lugares em uma seqüência espacial de pontos".15
Para se atingir um tal componente narrativo, o etnógrafo precisa contar com o tempo
como amigo pois ele só o atinge quando a densidade de sobreposição cumulativa dos tempos
vividos ao longo de um trabalho de campo, aparentemente fadado à «perda de tempo», se
precipita diante dos seus olhos. Horas de um trabalho persistente de escritura depositadas na tela
do computador, fitas de vídeo, películas fotográficas ou folhas de papel, sempre na tentativa do
investigador aprisionar o efêmero, são, finalmente, recompensadas e encontram, enfim, um
sentido desvendados por um leque de conceitos.
Sem dúvida, na etnografia de rua o perfil de uma comunidade, indivíduo e/ou grupo se
configura aos poucos pois o etnógrafo trabalha pacientemente a partir de colagens de seus
fragmentos de interação. Isto porque uma cultura urbana se expressa não só por convenções
gestuais, de linguagens recorrentes, especializações profissionais de seus portadores, mas se
apresenta igualmente através de suas práticas ordinárias, saberes e tradições com as quais o
pesquisador precisa familiarizar-se neste deslocamento em espaços que são, ou não, o seu próprio
lugar de origem.
Na busca do encontro e diálogos menos fortuitos que aqueles que os deslocamentos na rua
permitem ao etnógrafo, a cumplicidade dos pequenos gestos, sorrisos ou olhares dos habitantes
da rua, moradores locais, comerciantes, freqüentadores, mendigos, vendedores ambulantes,
menino(a)s de rua, feirantes, pode significar um convite a aproximação mais duradoura. Nestes
rituais de sedução e jogos de conquista da atenção do Outro, desvenda-se a lógica da criação dos
papéis através dos quais constroem-se os personagens do antropólogo e do «nativo»16 em
interação.
Assim, ao lado das observações sistemáticas dos lugares de sociabilidade de rua, das suas
intensidades segundo os diferentes horários, o comportamento corporal dos indivíduos e/ou
grupos nas esquinas, suas formas de interação nos bares e bancos de praças, suas regras de
evitações ou, ainda, as suas formas de cumprimentar ao cruzarem os olhares nas calçadas, tudo,
15 De Certeau. 1984.
16 A noção de “nativo” é o termo técnico para definir o OUTRO na interação de pesquisa de campo, não abrigando
mais os preconceitos da origem conceitual do mundo colonizado, mas aportando uma consciência histórica a
nominação
7
enfim, vai criando sentido na observação atenta do pesquisador a medida que ele se desloca. Esta
caminhada vai sendo enriquecida em sua densidade temporal na medida em que o pesquisador
consegue precisar, nas constâncias de suas diversas idas e vindas, os aspectos de permanência e
mudança que caracterizam e dão forma estética a este território urbano. Aos poucos, os
movimentos das pessoas, freqüentadores ou passantes se desenham em formas múltiplas, mas
constantes, através de micro-eventos da própria rua observados meticulosamente pelo etnógrafo
graças à perspectiva comparativa de uma atenção flutuante na observação sistemática da vida
social.
Apesar de uma presença freqüente aos lugares, da insistência para ser visto e reconhecido
pelo olhar do Outro, na etnografia de rua o contato nasce sempre de um pedido de consentimento à
interação e troca possíveis que se seguem ao reconhecimento dos movimentos, olhares, ruídos
locais, códigos e etiquetas a serem observadas e à aceitação da comunicação solicitada.
Entretanto, o pesquisador que vivencia a dramática da rua está sujeito a conhecer uma
diversidade de micro-eventos de interação a qual ele próprio interage ou reage conforme a
situação experienciada. O contato, sempre o contato, expressa o desejo de uma multiplicidade de
trocas com os «nativos», pois é a reciprocidade, sem dúvida, a razão de ser e existir deste analista
da diversidade e complexidade cultural. Nesta interação, ele depende não só do domínio da
língua do Outro para compreender o que é dito, mas a atenção aos tons e meios tons, das
insinuações e dos silêncios, dos não-ditos e refusas. Sem dúvida, o contato nasce deste processo
de ritualização do estar na rua quotidianamente.
Sugere-se aqui que os personagens do etnógrafo e do "nativo" nascem, ambos, numa
relação que é construída a partir de uma circunstância artificial provocada, provocativa e, por
vezes provocatória, porque jamais natural. A construção do contexto do encontro etnográfico
nutre-se destes códigos apreendidos pelo antropólogo na sua observação constante de si e do
Outro, muitas vezes sob o fogo cruzado da situação de interação tanto quanto de negociação de
realidade. Em todas elas, os atos que unem os antropólogos aos nativos assumem formas e graus
diversos de sentido por suas especializações e desempenhos de papéis frente a eles.
Tomando-se a pesquisa dos dramas sociais e performances que encerra o teatro da vida
urbana mediada pelo uso de recursos audiovisuais, estes dados levantados através do exercício de
etnografia de rua, podem ajudar aqui na reflexão das implicações do antropólogo como intérprete
de sua teia de significados. O uso da fotografia ou do vídeo na perspectiva do registro dramático,
8
e mesmo dramatúrgico, das interações entre indivíduos e/ou grupos na cidade permitem ao
etnógrafo aprofundar o estudo das formas de sociabilidade no mundo contemporâneo sob a
perspectiva da poiesis17 que rege o «estar-junto» de um corpo coletivo, a partir, portanto, da
expressão compartilhada de determinado tipo comportamento estético entre os moradores e/ou
habitués de um mesmo bairro, rua ou prédio de apartamentos.
Em especial, o recurso sistemático do vídeo nas etnografias de rua tem nos forçado a
refletir sobre o papel estratégico da imagem-movimento não apenas como modalidade de
registro, no tempo, do processo de inserção do antropólogo em campo (seus dilaceramentos), mas
como parte do seu processo de interpretação dos atos de destruição/reconstrução das formas de
vida social nas modernas cidades urbano-industriais, e de onde emerge a evidência da escritura
etnográfica como construção da inteligência narrativa do próprio antropólogo.
Neste sentido, no âmbito do desenvolvimento de um projeto sobre estudos de narrativas
como fonte de pesquisa para documentários etnográficos sobre a memória coletiva em Porto
Alegre (desde 1997) e em Paris (2001), recorre-se à técnica de “etnografia na rua” como mais um
exercício que permite ao etnógrafo não apenas reconhecer e interpretar o “nativo”, mas
igualmente interpretar o seu si-mesmo no contexto do diálogo com o Outro.
Se a etnografia de rua se apoia no uso de recursos audiovisuais, como câmeras de vídeo
ou fotografia, o olhar do antropólogo por vezes assume um lugar de destaque. E se, em muitos
momentos se é a situação de interação que irá introduzir o uso do equipamento audiovisual no
trabalho de campo, em outros é a câmera de vídeo ou a máquina fotográfica que irá inserir o
antropólogo no seu lugar de pesquisa.
No primeiro caso, o equipamento confirma o gesto da pesquisa naquilo que é captado
como vivido humano no presente, seja o seu próprio, seja dos nativos, e mesmo de ambos. No
segundo caso, as imagem registradas de instantâneos, quase sempre autorizadas, algumas até
mesmo roubadas, não são apenas testemunhas do passado do «eu estive lá» do antropólogo. Elas
podem exprimir o desejo expresso do nativo de ver-se «lá», eternizado na imagem capturada pelo
olhar do antropólogo.18
17 Ricoeur. 1994: pp. 55-76.
18 Os habitantes das grandes cidades, e mesmo de certos lugares urbanos como feiras, praias, etc; estão
suficientemente familiarizado com o mundo tecnológico da mídia, compreendendo-se cada vez mais como atores do
mundo social e não apenas expectadores passivos, desenvolvendo já há algum tempo sua própria forma de veicular a
imagem de si aos olhos dos outros (pesquisadores, jornalistas, cineastas, etc.)
9
A inclusão da máquina fotográfica ou câmera de vídeo na etnografia de rua não significa
um ato compulsório, mas quando for o caso, a sua adoção, exige um certo conhecimento das
regras dos códigos de ética para o seu uso, conforme aceitação por parte dos nativos uma vez que
o registro de imagens de pessoas e situações no mundo urbano contemporâneo responde a
direitos civis e disposições jurídicas e legais.19
Atentas a questão ética em torno da fixação do olhar etnográfico pela imagem fotográfica
e/ou videográfica, pode-se dizer que o uso de recursos audiovisuais durante uma etnografia de rua
é uma intervenção que ora faz parte da caminhada de reconhecimento do antropólogo do seu
lugar de pesquisa, ora configura-se como um momento de intervenção consentida pelos
personagens já contatados. Sob este ângulo, o potencial interpretativo da imagem etnográfica já
se apresenta no próprio contexto de interação que cria a sua situação de captação uma vez que o
triunfo da imagem, fotográfica ou videográfica, no trabalho de campo revela este frágil instante
em que o pesquisador ousa inscrever uma ruptura na interação com o Outro.20
Neste ponto, fica evidente que a proximidade etnógrafo/nativo na rua é possível sempre
que a presença da câmera é aceita pelos sujeitos pesquisados. Não raro, os próprios nativos são
convidados a manusear a câmera (seja fotografia, seja vídeo) registrando em imagens o mundo
que lhe rodeia a partir de sua própria perspectiva, dependendo é claro, de um tempo mais ou
menos longo da equipe no contexto da pesquisa de campo.
Imagem impressa num negativo, acomodada num papel ou transferida para a memória do
computador, fotos coloridas ou preto e branco, decisão de enquadramentos, definição da
velocidade (tempo), regulagem do diafragma, etc. a técnica exige um aprendizado que não se
processa sem que haja por parte do etnógrafo mediações conceituais. Em ambos os casos,
fotografia ou vídeo, o processo posterior da descrição etnográfica, no diário de campo, associado
ao da decoupage edição das imagens tornam-se um rico processo de avaliação reflexiva da
19 Por exemplo, a imagem de um estabelecimento comercial tem que ser anteriormente concedida, mesmo que seja só a
fachada; a foto e a imagem de uma pessoa facilmente identificada tem que ser autorizada pela mesma, mesmo que o
uso desta imagem seja restrita ao universo da academia sem interesse comercial ou de mercado. Ocorre que hoje
cada vez mais os projetos “extra-muros” das universidades são possíveis. Convite para exposições em locais públicos e
em programas de TV local podem ocorrer a posteriori e o pesquisador tem que estar respaldado juridicamente para a
utilização das imagens produzidas no âmbito de sua pesquisa.
20 A concordância do grupo é, sem dúvida, fundamental tanto quanto sua compreensão da existência dos direitos de
imagem e seu aceite em assinar documento para transmissão eventual da obra universitária em ambiente televisivo.
10
própria estética das imagens, distorcidas ou não, que habitam dos pensamentos do antropólogo
em situação de pesquisa de campo.21
Uma síntes do mundo
Rue Faubourg du Temple e Rue de Belleville - Paris
A oportunidade de desenvolver um pós-doutoramento em Paris, ao longo do ano 2001,
nos criou a possibilidade de ampliarmos para o contexto parisiense os exercícios de etnografia de
rua que vínhamos desenvolvendo em vários bairros de Porto Alegre. Em junho de 2001, dois
meses após nossa chegada a Paris e uma estada de dois meses alojadas em apartamento de
amigos, no XIIIème arrondissement (definição pelo qual a cidade de Paris é dividida
administrativamente em bairros) mudamos para nossa moradia alugada, um apartamento «deux
pièce», situado na Rue de la Fontaine au Roi, no 11° arrondissement, em edifício projetado pelo
arquiteto Louis Fargon em 1894, conforme está inscrito no pórtico de entrada.
Lá estávamos nós, habitando um bairro parisiense «típico» em razão de sustentar uma
tradição pluriétnica, tal qual tinha sido nossa proposta de trabalho de pós-doutoramento
estruturada ainda em Porto Alegre. Na época, a proposta era desvendar a cidade de Paris a partir
de uma pesquisa etnográfica sobre as formas tensionais de vida no seu contexto urbano, num
ensaio comparativo com as situações por nós pesquisadas, no Brasil.
Recém chegadas ao bairro, e morando próximo a Place de la Republique, uma região
considerada por muitos como território de cruzamentos culturais os mais diversos (o que lhe dá
uma feição de desordem que nos lembra a paisagem urbana de determinadas áreas centrais dos
grandes centros urbanos do Brasil), os primeiros dias no local foram de tímidos passeios nas
cercanias da nova residência, percorrendo várias vezes as suas ruas mais próximas e confirmando
as nossas representações a respeito das marcas da multietnicidade de sua paisagem, impressões
tecidas durante cinco anos, quando vivíamos em Paris (Eckert de 1987/1991 e Rocha de
1990/1994), na época de realização do doutoramento.
21 Para o caso do registro em vídeo, a equipe deve ser pequena para que seja possível, no contexto da rua, a conquista de
uma proximidade e intimismo de troca do etnógrafo com os indivíduos e/ou grupo investigados, o que uma grande
equipe não permite.
11
A escolha de uma rua em especial no bairro nos foi sugerida por um «nativo» francês e
parisiense. A Rue de Belleville (derivado do nome «belavista» por situar-se na segunda maior
elevação de Paris, após Montmartre) nos foi apresentada como sendo uma das mais interessantes
para explorarmos uma França «profunda» segundo nos confessara este “nativo” em referência a
sua memória povoada de boas lembranças do «tempos de boemia» dos anos 1970 no local. A
sugestão era um convite para retornarmos ao exercício reflexivo em torno das formas diferenciais
de se «viver a cidade» que vínhamos fazendo no Brasil, agora a partir de nossa inserção em Paris.
Foi, portanto, com tais motivações iniciais que nos aventuramos nas nossas primeiras
longas caminhadas pelas ruas que nascendo na Place de la Republique seguiam em continuidade
até o limite da cidade: Rue Faubourg du Temple e Rue Belleville.
Mapa na mão, livros de história da cidade e do bairro, folders turísticos, álbuns de
fotografias publicados, fichas de documentários assistidos sobre o bairro22, visitas a Internet a
partir da palavra-chave "Rue de Belleville", recorremos a estes como instrumentos importantes
para dar os contornos e contextos etnográficos iniciais dos traçados a serem percorridos.23
Nossas caminhadas iniciavam-se regularmente na Place de la République onde o trajeto
da Rue Belleville tem o nome de Rue Faubourg du Temple e deste ponto, subindo em direção ao
morro de Ménilmontant, sob os traços da linha de metrô Chatelet/Porte de Lilas, carrefour entre
os arrondissement Xème, XIème, XIXème e XXème. Nos limites desta linha de metrô situam-se várias
estações, inclusive, a estação de Belleville, território nos arredores da qual podemos ainda
descobrir pequenos fragmentos da ambiência antiga do vilarejo que ali existiu, preferido por
artistas e poetas desde o séc. XVIII, encantados com o ar «mais salubre» e as habitações mais
populares que existiam no local.
No trecho em que esta rua traz o nome de Rue Faubourg du Temple, ela concentra
inúmeras moradias residenciais misturadas a uma paisagem pontilhada de várias casas comerciais
22 Agradecemos a coordenadora de Assuntos Culturais do Forum des Imagens (Paris), Mme. Elise Tessarech, pela
permissão concedida para pesquisarmos neste centro.
23 Outra forma de conhecermos o lugar foi a busca de personagens que se dispusessem a falar sobre sua experiência de
viver no lugar. A primeira personagem nasceu nesta rua, tem hoje 45 anos e vive na Alemanha, onde é casada e tem
três filhos. Num encontro ocasional em julho de 2001, esta francesa se encanta com a informação que damos que
desenvolvemos pesquisa na rua de Belleville, e nos diz “nunca imaginei que pudessem se interessar por esta rua tão
pouco turística, mas para mim é uma surpresa agradável e tenho muitas coisas para te contar a respeito, pois nasci e
cresci naquela rua, mas foram outros tempos”. Tendo aceito ser entrevistada sobre o assunto, esta francesa nos
recebe em sua residência na cidade de Munique, desfilando uma quantidade enorme de fotografias antigas guardadas de
forma desordenada em caixas de camisas e sapatos.
Nossa outra informante é uma cineasta que vive em edifício localizado no cruzamento da rua Belleville com Jean
Dumay, sindica de seu edifício.
12
que se sucedem, tais como boutiques tipicamente francesas, açougues, um clube de lazer privado,
cafés, padarias, fruteiras, livrarias, um cinema com filmes alternativos, lojas de aparelhos
eletrônicos, etc. Na altura do Canal San Martin, esta mesma rua torna-se mais estreita. Na
esquina da direita, um restaurante MacDonald´s, e na da esquerda, um café tipicamente
parisiense, parecem um pórtico de entrada para um mundo “das mil e uma noites”. O comércio
passa a ser dominado por proprietários de origem árabe com quinquilharias que avançam pela
calçada buscando chamar a atenção do potencial cliente, além de algumas casas de produtos
típicos do Paquistão, das Antilhas e da África.
Nas lojas de “quinquilharias” situadas no trecho descrito acima vendem-se mercadorias
diversas por unidades. Faz-se esta observação para diferenciar este território daquele que
contempla o comércio da Rue de Temple, situado do lado oposto à Place de la République, e onde
os comerciantes, predominantemente de origem asiática, vendem à atacado. Neste local, as
vitrines podem ser esteticamente fascinantes, mas, restrito ao atacado, a clientela é quase
invisível, deixando as ruas vazias mesmo em dias de semana.
Ao contrário, na Rue Faubourg du Temple, torna-se extremamente difícil manter a
caminhada em linha reta uma vez que, ao longo do percurso, somos surpreendidos por produtos e
mercadores dispostos nas calçadas, disputando espaço com os pedestres. Calçadas sempre
lotadas, seja em horário diurno ou noturno, deslocar-se nesta rua é estar no meio de uma pequena
multidão que se acotovela e a palavra «pardon» é escutada aqui e lá.
A divisa entre a Rue Faubourg du Temple e a Rue de Belleville (trecho que constituía a
principal rua do antigo vilarejo de Belleville), situa-se no cruzamento com as grandes avenidas
denominadas Boulevard de la Villette e Boulevard de Belleville (esta última conhecida por
abrigar o ponto turístico do Cemitério Père-Lachaise). Fechar os olhos nesta encruzilhada e ouvir
os sons em diversas línguas, uma polifonia de vozes, nos desvendam atores dialogando em
francês, árabe, chinês, africano, português nos fazendo lembrar da noção maussiana de mana na
obra sobre a dádiva de Marcel Mauss, pois certamente este é um território onde misturam-se as
almas e as coisas.
Um olhar mais atento às fachadas das casas comerciais, confirma o multilingüismo como
marca local. Ao lado da indicação do estabelecimento escrito em francês, noblesse oblige,
(boulangerie, pâtisserie, coiffeur) encontramos regularmente as informações traduzidas na escrita
chinesa, árabe e turca, etc. Esta imagem de cruzamentos culturais é reforçada com a placa que
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anuncia a presença da filial Quick, fast-food americano, cercado pela ambiência fortemente
européia de cafés tipicamente franceses, de um carrossel tradicional disputado por crianças, das
padarias, confeitarias típicas e da fachada dos grandes prédios que se sucedem na rua.
Escolhemos um trecho de nossos diários de campo para descrever esta ambiência, ao
mesmo tempo, confusional e fusional.
«’Na rue de Belleville, em Paris, um viajante desavisado pode se sentir chocado com as
surpreendente mistura étnica do bairro (3 junho 2001)’. Hoje, dia 17 de agosto,
percorremos novamente a rue de Belleville e confirmamos que, as nossas primeiras
impressões registradas no diário de campo, logo da nossa primeira caminhada nesta rua,
no início de junho, não eram exageradas. Hoje, para se chegar neste «canto do mundo»,
não é preciso se deslocar de metrô, o sistema de transporte mais popular na cidade de
Paris. Nossa residência não se situa muito longe deste território. O dia estava bom e
convidativo para uma etnografia de rua, termo que adotamos, em 1997, para desenvolver
exercícios de observação de itinerários urbanos na cidade de Porto Alegre. Aliás, ao sair de
casa, na Rue de la Fontaine au Roi, pode-se dizer que estamos no território da
multiplicidade étnica típica do bairro. Ainda na nossa rua, na quadra oposta ao nosso
prédio, um restaurante senagelês, ao lado dele, um restaurante cubano e, seguindo-o, na
mesma calçada, um restaurante tipicamente francês. Na esquina de nossa quadra, um bar
com clientela que escuta em alto volume musicas cantadas em árabe ou tocadas com
a popular guitarra argelina. Mistura de signos que anunciam a característica do bairro:
uma torre de Babel, uma síntese do mundo. No curto percurso que se faz na Avenue
Parmentier, antes de subirmos a Rue du Faubourg du Temple em direção à Rue de
Belleville, podemos registrar alguns comércios dominados por hindus (ou serão
paquistaneses?)? Estas lojas comerciais se sucedem, mercadinhos, barbearias, etc.
Atravessamos, assim, este pequeno trecho da Avenue Parmentier, subindo a Rue
Faubourg du Temple até o entroncamento da boulevard La Villete com a boulevard
Belleville, que nos introduzem na Rue de Belleville. Neste carrefour tenho a tentação
de fotografar tudo. Mas evitei neste momento em que queria estar atenta aos
personagens da rua. Um grupo de três homens de origem hindu ou paquistanesa
conversam na esquina, mas eles são minoria perto da quantidade impressionante de
homens de origem argelina (ou serão magrebinos?) que se espalham nesta esquina.
Parece uma manifestação, mas eles estão todos apenas conversando em local público,
afirmando ser a rua o lugar masculino por excelência desta cultura. A presença destes
personagens nos cafés de esquina é massivaa. Cumplicidade predominantemente
masculina, sem dúvida. Tomam café, bebem cerveja e fumam muito as tradicionais
‘narguilé’, (cachimbos de origem persa). Vários grupos de homens se formam, os
cumprimentos com beijos na face são freqüentes, lembrando ser este um costume não só
francês mas também presente na cultura árabe. Os mais jovens parecem preferir um aperto
de mãos, mas tudo indica a presença de relações de bairro ou de vizinhança, ou
simplesmente ‘habitués’. Ouve-se várias línguas possíveis com predominância do
árabe. O movimento é incessante. Passam, caminham, tomam diversas direções
provando que evocar os limites da rua é uma preocupação errônea. Num esforço,
observamos quem são as mulheres nesta babilônia improvisada e percebemos que são
as mulheres de origem africana vestidas a caráter e as mulheres de origem asiática
que dominam as calçadas em atitude clara de compradoras de produtos diversos na
imensidão de lojas e armazéns que dominam a Rua de Belleville».
14
Sem dúvida, por inúmeros indícios, podemos afirmar que estamos num território
parisiense, embora a estética urbana que predomine não é a da suntuosidade de uma França
monárquica ou medieval, e mesmo de uma Paris haussmaniana como aquele que o turista
insistentemente busca nos arrondissements Ième, IXème ou XVIème. Na contramão do turismo de
uma história monumental francesa, Belleville viveu e, ainda vive, sob outro ritmo temporal.
Segundo apontam os livros de história da «velha Paris», nenhum outro canto da cidade conservou
suas características campestres por mais tempo que Belleville.
Até fins do séc. XIX, a paisagem do bairro concentrava pedreiras, vinhedos, sítios,
pomares, abatedores e algumas fábricas de manufaturas e armazéns, separados entre si por ruelas
estreitas que se entrecruzavam, com larguras diversas, variando de 60 cm e 2 m, onde galinhas,
patos, cães e pessoas disputavam seus espaços de vida, cercados por terrenos vagos, jardins
abandonados, tavernas, cabarés e casas acinzentadas de dois andares, com corredores fechados
por pequenas cercas de madeira em lugares. Um cenário que herdara os vestígios de ambiências
de sociabilidades coletivas de outros tempos, época em que ali realizavam-se as famosas corridas
de touros e a pitoresca festa do vinho com bebedeiras, orgias e badernas conhecidas e
reconhecidas na memória dos parisienses como a época em que Paris tornava-se «Roma sem o
Papa».
Segundo consta, ainda, em outros relatos que coletamos, o bairro nasce na paisagem
urbana de Paris, acalentado por uma importante presença de movimentos de revoltas e
conspirações populares que acompanharam a história francesa do séc. XIX. Uma história
marcada pela agitação política que se termina com a supressão inteira da comuna de Belleville,
em 1860, e, posteriormente, com a anexação de parte de seu território à região parisiense,
recebendo, desde ai, em diferentes épocas, levas de imigração de diversas procedências cujas
marcas pluriétnicas caracterizam o local. A forte presença recorrente destas camadas de
diferentes tempos, através da referência do olhar etnográfico aos seus fragmentos e detalhes na
paisagem urbana desta área do bairro, amalgamam-se no tempo presente de nossa caminhada.
Desde o início do empreendimento do exercício, portanto, fiéis à idéia de aprofundarmos
as reflexões em torno da “etnografia de rua” como técnica destinada ao estudo dos itinerários
15
urbanos e a memória coletiva no mundo contemporâneo, insistimos em caminhadas pela Rue de
Belleville onde o destino final, em termos geográficos, pode ser considerado a Porte de Lilas,
uma das portas que delimita a fronteira entre a cidade de Paris, organizada em 20 bairros, e a
periferia de Paris, conhecida pelo nome de banlieue.
Em inúmeros pontos dos trajetos adotados para se atingir a Rue de Belleville, guiavam-nos
algumas publicações destinadas a curiosos sobre as histórias registradas na memória dos bairros
parisienses e de suas regiões limítrofes. Com estas intenções, nos deixamos levar por idas e
vindas em ruelas que cortam a Rue de Belleville, e que nos conduziram a belas e boas surpresas,
como foi o caso da descoberta do Parque de Belleville, cujo acesso por uma pequena ruela, a Rue
Piat, bordada à direita, com algumas antigas árvores herdadas das velhas alamedas ali existentes,
e que esconde dos passantes a «bela vista» da cidade de Paris que dali se pode ter, sem precisar
disputar com nenhum turista o melhor ponto de visão.
Mantivemos caminhadas constantes na tentativa de se descobrir uma Belleville «no tempo
de outrora» mas cujos indícios nos ligassem a atual Belleville. Esta foi a forma como tomávamos
contato com os pequenos pedaços de paisagem que são quase invisíveis se comparados com a
agitação da Rue de Belleville, como foi o caso da Rue de l’Hermitage. Nesta rua de traçado
irregular, quase um beco, e que se situa à esquerda de quem desce a colina de Belleville, ainda se
pode observar diminutos conjuntos arquitetônicos formados por aglomerados de antigos casarios,
com seus jardins apertados por prédios de apartamentos. Todas estas casas baixas foram
adaptadas às atividades de seus novos donos e/ou moradores, em geral artistas, num sinal da
permanência da aura através da qual Belleville tornou-se conhecida na memória da cidade.
Mesmo na ausência da antiga Belleville e dos seus acidentes geográficos (fontes, pedreiras
e poços) para nos situar na ambiência romântica do bairro, a cada nova saída insistíamos em levar
conosco o atual mapa de Paris numa das mãos e, na outra, livros da «velha Paris» que narravam
estórias pitorescas do lugar. Íamos, assim, caminhando a passos lentos, surpreendendo-nos aqui e
acolá com os trajetos sinuosos das ruas que, vez por outra, cortavam, em zigue-zague, a Rue de
Belleville, conduzindo-nos em direção ao topo do morro de Ménilmontant.
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Em outra ocasião, deslocando-nos à esquerda de quem sobe a Rue de Belleville, em
direção da Place de Fêtes, atingimos, no coração do XXème arrondissement, o Parque des Buttes
Chaumont. O passeio havia sido programado no sentido de aproveitarmos, como moradoras do
local, a ambiência tipicamente de lazer de fim-de-semana dos parques parisienses num
quentíssimo dia de verão. Pais com seus filhos, casais de namorados, grupos de adolescentes,
solitários empedernidos, cachorros e seus donos, vendedores de sorvetes, cata-ventos e balões,
enfim, uma multidão de pessoas passeando, deitadas na grama dos jardins ou sentadas nos bancos
acotovelavam-se para disputar um lugar ao sol. Recém chegadas do mais rigoroso verão tropical,
ao contrário dos parisienses que acabavam de sair de um longo inverno cinzento, frio e chuvoso,
apenas desejávamos uma sombra agradável protegidas do sol e do calor intenso que fazia naquele
dia.
Nos deslocamentos constantes, nos divertíamos com o fato de estarmos ora no XIXème
arrondissement, ora no XXème arrondissement, uma alteração de posição no mundo que dependia
de onde estávamos situadas, se de um ou de outro lado, esquerda ou direita de quem desce a Rue
de Belleville. Uma divisão jurídico-administrativa que não alterava a paisagem da rua, e muito
menos a feição do próprio bairro, assim como não produzia nenhum efeito de marcas diferenciais
entre os estilos de vida dos moradores locais.
Nas caminhadas constantes, quase sempre a descoberta de pequenas ruelas e impasses
como incidentes de percurso, marcaram nosso afastamento da Rue de Belleville. Num destes dias,
aproveitamos a visita de uma colega, Elizabeth Lucas, para nos colocarmos como guias turísticos
de seu deslocamento no bairro.
Optamos por subir a colina de Ménilmontant de ônibus, o «96», até as proximidades da
Place de Saint Fargeau, ponto final de várias outras linhas de ônibus. Uma passageira
brasileira que se encontrava no ônibus, ouvindo nossos comentários em língua portuguesa e
sotaque brasileiro, identificou-se rapidamente como antiga moradora do bairro e
profunda conhecedora de seus hábitos e características, indicando-nos várias outras opções de
trajetos que desconhecíamos.
17
]O encontro foi um lembrete para nós de que ainda tínhamos um longo caminho de
aprendizagens sobre os diversos territórios do bairro que permaneciam ainda invisíveis aos
nossos olhos. Humildemente descemos do ônibus, caminhamos até a Rue des Pyrenées, e de lá
iniciamos, então, a «descida» da Rue de Belleville pois estávamos no alto da colina. Pequenas
ruelas sem saída nascem em perpendicular à Rue de Belleville. Aproximando-nos da igreja Saint
Jean Baptiste de Belleville, prestávamos mais atenção a seqüência de edifícios, buscando aquele
onde havíamos visto, em nossas primeiras incursões no local, uma placa anunciando que ali havia
habitado a cantora francesa Edith Piaf, tendo, segundo biografias, nascido nas próprias escadarias
que conduziam aos apartamentos, com a sua mãe em estado de embriaguez.
Na ocasião, “descer” a Rue de Belleville era percorrer o caminho inverso do que havíamos
nos habituando a fazer quando deixávamos a nossa casa em direção ao bairro. Do topo do morro,
esforçando-nos por olhar por cima da curva que esta rua desenha, primeiro à direita, e depois, em
forma de “S”, à esquerda, pode-se ter uma idéia dos motivos originais que deram este nome ao
lugar. Posicionado quase no topo da colina, o etnógrafo-turista consegue uma belle vue da cidade,
uma imagem fugaz da Tour Eiffel que é logo recortada, aqui e ali, pelo perfil das fachadas dos
prédios de apartamentos que hoje ocupam a área. Visto de cima, sob o topo do plateau de
Ménilmontant, de 117m, desce-se quase em linha reta até a Place de la République, um dos
carrefours que liga em forma de estrela inúmeras ruas e avenidas que deságuam no XIe
arrondissement.
No percurso de nossas etnografia de rua, em Bellevile, a interação com o Outro nem
sempre é possível. Em alguns, ele é simplesmente provocado pela situação de pesquisa
propriamente dita, em outros, este encontro procura se revestir do tom casual de nossas ações
ordinárias no bairro como parte integrante de sua população de habitués, como descrevem os
fragmentos do cotidiano etnográfico transcritos neste trecho de diário de campo que segue:
Para fotografar um contexto interno na rue Belleville, entramos num salão de beleza e tentamos
estabelecer uma conversação com a proprietária e funcionárias, todas mulheres asiáticas. A
proprietária não permitiu que eu fotografasse o local e para disfarçar meu constrangimento, optei
por dizer que também estava lá para um corte de cabelo, buscando durante este tempo, explicar-me
melhor. O que foi aceito sem nenhum entusiasmo, passando-me para uma jovem que não falava francês
e indicava todas as ações que devia seguir com gestos e palavras soltas em chinês. O diálogo, em plena
Paris, fora interrompido pela barreira da língua.
18
Em ambos os momentos por nós assinalados acima, o «caminhar» do etnógrafo busca as
diferenças entre o olhar da investigação e o olhar que orienta as caminhadas nos locais turísticos
de Paris, onde este status, «turista», parece revestir a todos de uma certa proteção à crítica ou ao
olhar reprovador. A foto autorizada ao turista, parece ser menos comprometedora de uma
situação de inserção no local repleta de práticas ilegais e estratégias de sobrevivência,
pressuposto que podemos exemplificar através deste relato:
Mais uma recusa para fotografar, desta vez um vendedor de castanhas parado na esquina da Place de la
République. Um carrinho de supermercado é a “churrasqueira” provisória, onde um fogareiro com carvão
em brasas esquentam as castanhas depositadas em uma chapa com furos. A reação do provável indiano
foi taxativa, não! Aqui uma pressuposição passou a ganhar forma para nós: não é negligenciável o
número de trabalhadores estrangeiros, principalmente vendedores ambulantes, em situação irregular. A
fotografia se tornaria uma prova desta atividade ilegítima e por isto, em geral a foto "posada" é
recusada. A negociação mais longa é impossível devido a barreira da língua, são trabalhadores que não
falam francês e se escondem em seus segredos de comunidade étnica.
Uma outra parte extraída de nosso diário de campo ilustra esta forma «casual» de
ocuparmos os lugares de vida urbana na Rue de Belleville tal qual apreendemos como «etnografia
de rua» e como ela permite, por sua fluidez, que possamos nos aproximar do contexto urbano de
grandes cidades como estes fossem verdadeiros «cantos do mundo»:
Ir às compras em Belleville, na tentativa de descobrir temperos e ingredientes para uma feijoada «à
brasileira» é descobrir lojas de especiarias antilhesas e africanas. Lojas que procurei também
levada pela necessidade de comprar certas bugigangas de plástico para a casa, e que no Brasil
encontramos nos supermercados. Aqui, para comprar um balde, uma garrafa térmica, copos de vidro
ou material elétrico vai-se nas lojas «dos árabes», se queremos comprar tecidos para cortinas e
almofadas desloco-me até as lojas dos «indianos» e africanos, para renovar o estoque caseiro de
molhos e chás, há os supermercado dos «chineses». Posso, se for o caso, «dar um pulo» no Monoprix,
um supermercado «bon marché», com aparência de uma loja de departamentos, para ver as ofertas de
vinhos e queijos franceses! Todas elas são sempre boas e nobres razões para percorrer a Rue de
Belleville em seus mais diversos contextos, como se ali vivessemos há um bom tempo. Sem dúvida,
ao final de cada ida à campo sempre acabo me interrogando sob a forma como a aparência caótica
da rua não só agrada aos meus olhos de etnógrafa da desordem urbana, mas desafia o meu senso
estético ao provocar a busca de um sentido para a diversidade tensional de cores, temperaturas, cheiros,
texturas, tamanhos, formas dos produtos comercializados nestes lugares, tal qual as próprias pessoas
que transitam por entre as prateleiras, corredores e calçadas de Bellevile. Um esforço reflexivo que
vem sempre acompanhado do ato recorrente de me disfarçar no Outro, certamente na tentativa de
encontrar ali, eu própria, o meu lugar de estrangeira em Paris, fazendo desta rua a minha casa natal.
Certamente, algumas convenções sociais na forma de habitar tais áreas de um bairro
parisiense nos pareciam familiares, não só por já termos vivido na cidade de Paris para
desenvolver programa de doutoramento, mas por compartilharmos de uma cultura urbana que,
mesmo em se tratando de Brasil e de uma cidade da escala de Porto Alegre, cultiva o gosto pelo
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deslocamento no anonimato.
Entretanto, caminhar por Paris, nos limites traçados pela Rue de Bellevile nos remetia
constantemente ao nosso encontro, como estrangeiras, com a multiplicidade de culturas e etnias
denunciadas não apenas pelas diferenças entre tons de pele, cor dos olhos, tipos de roupas, de
penteados e adereços, de expressões e gestos etc. dos habitantes locais, homens, mulheres ou
crianças, moradores ou não. Havia igualmente a confrontação com as inúmeras sonoridades de
voz com que o Outro se apresentava aos nossos olhos. Seja em árabe, chinês, vietnamita, hindu,
yddish, seja nas línguas africanas que nos era difícil de precisar a origem, todas elas, ao mesmo
tempo, neste espaço parisiense, nos incitavam constantemente à uma reflexão sobre nossa própria
língua e cultura como estrangeiras ao lugar, apontando para o esforço de «vigilância
epistemológica» a ser feito para ultrapassar tais barreiras. Um pequeno trecho de nosso diário de
campo pode ilustrar este processo aqui apontado:
No dia 5 de outubro, o traçado percorrido não se diferencia muito de caminhadas anteriores.
Caminhar pela Faubourg du Temple e pela Belleville é o objetivo, mas neste dia carregamos um
aparelho fotográfico. A intenção maior é buscar a riqueza da multiplicidade étnica. Não é difícil
cumprir este objetivo pois este é o contraste predominante. Lojas comerciais de origem árabe, judia,
hindú, chinesa, vietnamita, cubana, etc, se vizinham numa aparente harmonia contrastando com o
clima de conflito e tensão mundial entre as culturas orientais e ocidentais que a operação vigilânciapirata
do governo francês em seu programa contra o terrorismo, busca acordar. Mas nestas ruas,
nenhum policial se faz presente. As diversas etnias ali presentes certamente precisam recorrer as notícias
da imprensa e televisão para lembrar que a chamada guerra americana ou ocidental contra o terrorismo
acontece neste mesmo momento em algum lugar. Fotografamos vários estabelecimentos e situações
na rua. Um vendedor ambulante de origem hindu vende milhos aquecidos no carvão. Não entendo de
onde possa ser a origem deste hábito. Perguntamos para ele se podemos fotografar e ele consente, coisa
rara pois em geral temem as fotos por serem trabalhadores irregulares. Mas o diálogo sobre a prática da
venda do milho não prossegue, pois o vendedor não fala francês. Um outro senhor, parecendo ser de
origem árabe, pergunta o que procuramos saber. Repito minha pergunta e devido meu forte sotaque
ele interroga de onde venho? Respondo ser brasileira. O senhor, que entendi ser uma espécie de
“fiscalizador” da possível aproximação de fiscais oficiais, pergunta se sou turista. Respondo que
sim e delicadamente justifica não conhecer a origem do hábito de vender milho queimado. O que
importa é que todos comprem. Lembramos que os franceses costumam vender castanhas da mesma
forma, alimentação que os teria salvo da fome em diversas situações de guerra e de miséria. Seguimos
nosso caminho sempre fotografando visando interações e a prova de que, em Paris, a estética urbana é a
mistura de estilos.
Retomando-se os diários de campo para fins de análise, somos atraídas pela cultura
polifônica tratada por Bakhtin24 e por seu conceito de heteroglossia visando dar conta, aqui, da
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capacidade de convivialidade plural em Belleville, das questões de identidade étnica, das tensões
inerentes à multiplicidade de línguas, dialetos e sotaques falados, dos arranjos nas formas de
sociabilidade locais e das inúmeras formas estéticas que se tecem segundo as múltiplas e
complexas formas de interação, eventos efêmeros ou eventos cotidianos e habituais que nos
apresentam os referentes urbanos em que o contexto social se ancora.
A apresentação de outro extrato do diário de campo pode aqui exemplificar, mais
precisamente, o que dissemos acima:
No dia 5 de setembro, a caminhada como sempre foi iniciada na rue Faubourg du Temple. A
intenção era seguir um traçado mais desordenado tendo esta rua e a de Belleville como referência,
fazendo quase um zigue-zague. Na esquina com Boulevard de la Villette um grupo de seis pessoas
formados de homens e mulheres, estão sentados na calçada com clara aparência de embriaguez.
Parecem ser de origem francesa, repetindo uma tendência que observamos nas ruas parisienses:
pessoas em geral de cor branca, na faixa de 30 a 50 anos, estão sentados em calçadas ou degraus
de lojas consumindo muito álcool. Costumam ficar sempre no mesmo lugar, pedem dinheiro e
frente a recusa dizem um simples «merci», ou mesmo um desaforo, certamente devido o estado de
embriaguez. Neste dia não faz frio. Outros bancos são ocupados por homens provavelmente
aposentados devido a aparência mais idosa. Portam típicos chapéus argelinos. Conversam em dupla
ou pequenos grupos. Conversam em língua de origem, parecem tranquilos. Aparentemente jogam
conversa fora para matar o tempo. Já a esquina com a boulevard Belleville, chama a atenção a
quantidade de açougues judeus próximos a uma sinagoga. Os negócios estavam todos fechados com
bilhetes escritos a mão anunciando os obséquios de um dos patrões.
O que vivemos nos percursos cotidianos é intensamente o movimento, a interação, as
práticas cotidianas. A efemeridade da nossa passagem, entretanto, certamente nos impede de
desvendar uma série de códigos locais, etiquetas, segredos, não ditos, gestos, olhares e ações que
nos passam desapercebidos, e que apenas uma continuidade da pesquisa de campo neste espaço
pode elucidar. Mas é a própria experiência de estranhamento/familiarização que esta sendo
dramatizada. Aparências imediatas buscam ser ultrapassadas em parte pela imagens que retemos,
pela fotografia, pelo vídeo, pela descrição no diário.
Em especial, no que se refere o uso dos recursos audiovisuais, nossa opção foi, neste
momento, fotografar com uma câmera digital as cenas, personagens, situações e dramas que
compunham a paisagem urbana de Belleville, como se reflete nesta passagem do diário de campo:
Neste dia, nosso deslocamento com a máquina parece não chamar a atenção pois a
prática do turismo no local não é estranha aos moradores. A obscenidade que nosso
olhar indiscreto possa provocar, parece não incomodar. A luz para tomada fotográfica
é boa. Um típico dia de outono. O enquadramento é, ora no sentido horizontal, ora
vertical. Pode-se observar que tendemos a enquadrar de forma retangular certamente
devido a estreiteza da rua ea intenção de, neste momento, buscarmos mapear os
espaços de continuidade das ruas. Fotografamos interações e cenários que para nos,
traduzem as formas do lugar. Interagir com os habitantes foi um pouco mais frustrante.
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24 Bakhtin. 1992.
O uso sistemático da câmera fotográfica ou da câmera de vídeo nas caminhadas por estas
ruas objetiva a reconstrução de uma narrativa a partir da própria temporalidade do registro da
imagem no instante em que o acontecimento se desenrola sob nossos olhos, o que desencadeia a
presença de todas as outras imagens que nos habitaram em momentos e situações anteriores
quando o olho que registrava não era o da câmera, mas o olho humano repleto de pequenas
impressões mnésicas, experiências sensoriais, evocação de imagens de outras cenas urbanas, em
outros bairros, cidades e países.
Cenas evocadas pelo diário de campo, pela fotografia ou vídeo, pouco importa, tratam-se
de imagens que nos habitam a medida em que nos deslocamos pelas ruas, avenidas, lojas,
esquinas, etc. Da Paris de Hemingway à Paris de hoje, de Paris à Porto Alegre, e vice-versa, elas
estão lá, conosco a exigir o rigor comparativo com as imagens apreendidas que dão sentido ao
evento urbano propriamente dito que encerra a etnografia de rua, em Belleville.
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Referencias
BACHELARD, Gaston. (1989) La poétique de l'espace. Paris, Puf.
BACHELARD, Gaston. (1989) La terre et les rêveries du repos. Paris, José Corti.
BAKHTIN, Mikhail. (1992) Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes. BAUDELAIRE ,
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quarta-feira, 24 de maio de 2017

Tânia Salem


Ficha de Leitura

Fichamento da obra

SALEM, Tânia. "A "despossessäo subjetiva": dos paradoxos do individualismo. In: Revista Brasileira Ciências Sociais n° 18, ano 7, fev. 1992.

Autor da Ficha: JACQUES JACOMINI



Introdução

A proposta de Tânia Salem no artigo A “Despossessão Subjetiva”: dos paradoxos, do individualismo é bastante interessante e adequada para realizarmos uma espécie de fechamento das discussões que realizamos até agora na disciplina “Individualismo, Sociabilidade e Memória”. Assim entendemos esta atividade de avaliação e assim nos empenhamos na feitura deste pequeno ensaio.
Para a construção deste ensaio, seguimos a seguinte orientação estrutural: Em um primeiro momento – Despossessão Subjetiva ? – trazemos questões mais gerais tomadas do artigo de Salem, como os seus objetivos e princípios norteadores, inspirações e influências teóricas. Neste ponto destacamos ainda a divisão dos blocos (ou momentos) que compõe o trabalho da autora.
Em um segundo momento - Retomando autores e suas concepções – tentamos trazer para este ensaio  considerações sobre alguns dos autores trabalhados por Salem. Dentre eles, elegemos Simmel para uma retomada mais pausada. Sobre este último, realizamos inicialmente um apanhado mais geral sobre a sua teoria e, posteriormente, uma explanação mais específica sobre as suas concepções de indivíduo. 

1. Despossessão Subjetiva ?
Como a própria autora coloca, o objetivo deste trabalho é “repensar o modo como cientistas sociais vêm tematizando a categoria moderna de Pessoa, consubstanciada na noção de indivíduo e, em especial, na de indivíduo psicológico”. Este esforço analítico de Tânia Salem tem nome: “A Despossessão subjetiva”. A premissa básica é a de que há uma instância no interior do próprio sujeito que o constrange às expensas de sua vontade e consciência.
A abordagem desenvolvida pela autora visa “depreender descontinuidades significativas na representação do sujeito psicológico, relativamente à de seu predecessor – o indivíduo jurídico”. Salem destaca ainda que o indivíduo psicológico só adquire sentido e inteligibilidade em um universo individualista.
O Artigo, desenvolvido em dois blocos (além da apresentação): “Do ‘Individualismo possessivo’ ao sujeito psicológico: inflexões e descontinuidades” e “Das articulações entre a ‘despossessão subjetiva’ e a configuração individualista”, chama para o debate diversos pensadores que trabalhamos em sala de aula dentre os quais Dumont e Simmel  aparecem em relevo. Dentre aqueles que não abordamos e que a autora utiliza na sua análise, destacaria a presença de Foucault que “ainda que não se referindo explicitamente à destituição do sujeito sobre si mesmo, a tangência, e a elucida parcialmente, ao invocar as conseqüências derivadas do fato de saber / poder formarem a partir do século XIX um todo indissociável.”
Ao citar Gauchet & Swain – A História da individualização é, de outro lado e necessariamente, a história de uma despossessão ou de uma destituição subjetiva – fica claro para nós a fonte (ou uma das fontes) de inspiração que Salem toma para articular a construção deste texto, bem como o porque de defini-lo “A Despossessão Subjetiva”.

 Retomando Autores e suas Concepções
Salem destaca que os primórdios da investigação sobre este tema estão calcados na obra de Mauss, porém é Dumont que “é o autor contemporâneo que mais extensa e sistematicamente se empenhou na relativização e na crítica contumaz da moderna categoria de indivíduo”.
Tendo como tese central a oposição entre individualismo e holismo, a contribuição de Dumont, segundo a autora, revelou-se insuficiente para a apreensão da categoria moderna de indivíduo. Diante desta situação, a recorrência as teses de Simmel, Lasch, Sennett, Ariès, Foucault, entre outros é a alternativa capaz de “suprir o ‘elo falante’ relativamente ao eixo analítico dumontiano.” Diante dos pensadores “alternativos” que colaboram para a “despossessão subjetiva”, destacados por Tânia Salem, elegemos Simmel para realizarmos um aprofundamento maior sobre as suas concepções.
Para Simmel, a sociedade existe onde vários indivíduos entram em interação. Esta ação reciproca se produz sempre por determinados instintos ou para determinados fins. Instintos eróticos, religiosos ou simplesmente sociais, fins de defesa ou ataque, de jogo ou ganho, de ajuda ou instrução,  estes e infinitos outros fazem com que o homem se encontre num estado de convivência com outros homens, com ações a favor deles, em conjunto com eles, contra eles, em correlação de circunstâncias com eles. Essas interações significam que os indivíduos, nos quais se encontram aqueles instintos e fins, fora por eles levados a unir-se, convertendo-se numa unidade, numa "sociedade". Pois unidade em sentido empírico nada mais é do que interação de elementos. O mundo não poderia ser chamado de uno, se cada parte não influísse de algum modo sobre as demais, ou se em algum ponto se interrompesse a reciprocidade das influências.
A unidade ou sociaçäo pode ter diversos graus, segundo a espécie e a intimidade que tenha a interação - desde a união efêmera para dar um passeio até a família - desde as relações por prazo indeterminado até a pertinência a um mesmo Estado - desde a convivência fugitiva num hotel até a união estreita de uma corporação medieval. Simmel designa como conteúdo ou matéria da sociaçäo tudo quanto exista nos indivíduos (portadores concretos e imediatos de toda a realidade histórica) - como instinto, interesse, fim, inclinação, estado ou movimento psíquico -, tudo enfim capaz de originar ação sobre outros ou a recepção de suas influências.
Dito de outra forma, podemos considerar conteúdos (materiais) versus formas de vida social onde:
1°) uma delas é que em qualquer sociedade humana pode-se fazer uma distinção entre seu conteúdo e sua forma.
2°) é que a própria sociedade em geral se refere à interação entre indivíduos. Essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos. Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxilio ou instrução, e incontáveis outros, fazem com que o homem viva com outros homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando desse modo, reciprocamente, as suas condições - em resumo, para influenciar os outros e para ser influenciado por eles.  A importância dessas interações esta no fato de obrigar os indivíduos, que possuem aqueles instintos, interesses, etc.; a formarem uma unidade - precisamente, uma "sociedade".
A sociaçäo só começa a existir quando a coexistência isolada dos indivíduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração, que caem sob o conceito geral da interação. A sociaçäo é, assim, a forma realizada de diversas maneiras, na qual os indivíduos constituem uma unidade dentro da qual se realizam seus interesses. E é na base desses interesses - tangíveis ou ideais, momentâneos ou duradouros, conscientes ou inconscientes, impulsionados casualmente ou induzidos teleologicamente - que os indivíduos constituem tais unidades.
Em qualquer fenômeno social dado, conteúdo e forma sociais constituem uma realidade unitária. Uma forma social desligada de todo conteúdo não pode ter existência, do mesmo modo que a forma espacial não pode existir sem uma matéria da qual seja forma. Tais são justamente os elementos, inseparáveis na realidade, de cada ser e acontecer sociais: um interesse, um fim, um motivo e uma forma ou maneira de interação entre os indivíduos, pelo qual ou em cuja figura aquele conteúdo alcança realidade social. Portanto, temos nem só objetividade, nem só subjetividade. Somente quando a vida desses conteúdos adquire a forma da influência reciproca, só quando se produz a ação de uns sobre os outros - imediatamente ou por intermédio de um terceiro - é que a nova coexistência social, ou também a sucessão no tempo, dos homens, se converte numa sociedade.
Para clarear um pouco mais a tese  geral de Simmel, destacamos a seguinte citação:
“Por sociedade não entendo apenas o conjunto complexo dos indivíduos e dos grupos unidos numa mesma comunidade política. Vejo uma sociedade em toda parte onde os homens se encontram em reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou passageira.  Logo, em cada uma dessas uniões produz-se um fenômeno que caracteriza, da mesma forma, a vida individual; a cada instante, forças perturbadoras, externas ou não, opõem-se ao agrupamento, e este, se for deixado a agir por sua própria conta, não tardarão elas a dissolvê-lo, isto é, a transferir seus elementos para agrupamentos estranhos. ... Nessa circunstância, temos a sociedade como uma unidade sui generis, distinta de seus elementos individuais”.
No que tange a questão específica da concepção de indivíduo em Simmel, podemos afirmar que “indivíduo em Simmel afirma-se como um ser proprietário de si, tanto perante a sociedade quanto de um ponto de vista subjetivo”.
O indivíduo psicológico em Simmel fala de um sujeito fundado em uma autonomia subjetiva radical capaz de erigir em torno de si um abrigo intimo que o protege dos "outros".
Sobre a concepção de  indivíduo moderno, temos Simmel em uma posição diferenciada de Dumont e Pacpherson, pois estes apresentaram uma preocupação sobre o plano formal ou externo do indivíduo (indivíduo jurídico), enquanto que Simmel debruçou-se de forma explícita sobre o domínio mais propriamente interno do indivíduo (indivíduo psicológico).