domingo, 17 de abril de 2016

individualismo, sociabilidade e memória









UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Disciplina: Individualismo, Sociabilidade e Memória
Professora: CORNELIA ECKERT

Semestre 99/1















- Estudo  Antropológico  de  um  Espaço  Urbano  Singular: Cais  do  Porto  da  Cidade  de  Porto  Alegre  (ou da Cidade que tem porto até no nome)  -














Aluno: JAQUES XAVIER JACOMINI





 



“(...) O Porto, em que acreditávamos tanto, terminou em frustração, com o projeto de transformar-se em área de lazer. Os barcos e os trens nos abandonaram, dando lugar aos caminhões. A indústria fabril, depois de um ciclo de prosperidade, migrou para outras paragens. O capital internacional não acha muitos atrativos numa área de caminhos estrangulados e de comunicações roucas.(...)”  (Franco, 1997) Sérgio da Costa Franco






-  Estudo  Antropológico  de  um  Espaço  Urbano  Singular: Cais  do  Porto  da  Cidade  de  Porto  Alegre  (ou da Cidade que tem porto até no nome)  -





Monografia de Avaliação Final da
Disciplina: Individualismo, Sociabilidade e Memória
Professora: Cornelia  Eckert
Semestre 99/1









“Neste teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante”. Gaston Bachelard




RESUMO











Esta monografia tem por objetivo trabalhar com o depoimento de dois informantes, a fim de proceder a análise e a compreensão das suas relações de pertencimento que  constróem com o Cais do Porto de Porto Alegre. Sendo trabalhadores (um aposentado e outro ainda em atividade) deste espaço urbano, a sua relação com o Cais está voltada especialmente para uma atividade laboral que exerceram (ou que exercem) neste local. Eles lembram e recuperam informações de diferentes camadas e instantes de tempo que viveram no Cais do Porto. A análise destas informações também nos permite perceber importantes aspectos da dinâmica social e da organização físico-espacial deste espaço urbano, sendo este também um dos objetivos desta pesquisa. Dito de outra forma, pretendemos, entre outras coisas, caracterizar a singularidade deste espaço urbano, investigando as suas especificidades (arquitetônicas, urbanísticas, sociais e econômicas), a partir das construções mnemônicas e relatos dos informantes, bem como das suas observações sobre a organização físico-espacial deste espaço urbano.























INDICE








Resumo .................................................................................................................................... 03

Introdução ................................................................................................................................ 05


1.      O Cais do Porto da Cidade de Porto Alegre ...................................................................... 08
1.1  A Atual organização Físico-Espacial do Cais do Porto de Porto Alegre ........................... 09

2.      Revisão Crítica da Bibliografia .......................................................................................... 12

3.      O que dizem os informantes sobre o Cais do Porto de Porto Alegre ................................. 22


Conclusão ................................................................................................................................. 30

Bibliografia .............................................................................................................................. 33















 
INTRODUÇÃO


O Cais do Porto de Porto Alegre já foi a principal porta de entrada para a cidade. Viveu momentos de intensa atividade comercial, fluvial e social. Atualmente o cenário, a dinâmica social e a organização espacial naquele local demonstram que o Cais vive um outro período da sua história. Várias transformações ali ocorreram e outras tantas virão a ocorrer, diante de algumas propostas de reestruturação e reorganização arquitetônicas, urbanísticas e comerciais do atual Cais do Porto de Porto Alegre.
Independente da sua condição de maior ou menor atividade econômica, o Cais do Porto de Porto Alegre está presente no imaginário do portalegrense como uma referência forte presente no seu dia a dia. Isto acontece porque freqüentemente temos a  história do porto, a cultura do porto, o trabalho do porto, (...) ressurgindo com novas roupagens, em novas situações, sobre os mais diferentes aspectos. É a situação em que se grava um novo comercial de televisão, é o momento em que a cidade recebe uma nova atração cultural como um imenso navio-biblioteca que ali atracou recentemente ou mesmo quando o Sr. Beto Albuquerque, Secretário dos Transportes, vai para a imprensa noticiar que dará prioridade para a navegação, para o transporte hidroviário e para a recuperação do Porto. Por estes e por outros motivos afirmamos:  o Cais do Porto de Porto Alegre é um espaço urbano singular. Contudo, a imagem que o cidadão desta cidade constroe do seu porto se altera e se renova constantemente, entre outras coisas, segundo o seu tipo de relação com este espaço ou conforme a maneira como interage neste espaço.
A minha inserção, como pesquisador de iniciação científica, no Projeto Integrado / CNPq  “Estudo Antropológico de Itinerários Urbanos, Memória Coletiva e Formas de Sociabilidade no Meio Urbano Contemporâneo”[1], me levou a um primeiro contato com o Cais do Porto. Proponho, hoje na condição de aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), continuar esta investigação científica, agregando novos elementos colhidos nas atividades de campo, bem como, acrescentando novos pressupostos teóricos trabalhados nas disciplinas curriculares do curso mencionado.
Diante do universo mais geral, que é toda a cidade, o projeto supra mencionado  propunha trabalhar com alguns micro-universos, fundamentais para o entendimento e a reconstrução etnográfica da cidade como um todo. O Cais do Porto de Porto Alegre foi um destes micro-universos selecionados para esta pesquisa e coube a este pesquisador  desenvolver as atividades de pesquisa e análises naquele local.
Comecei a realizar esta investigação em novembro de 1997, quando passei a realizar várias idas a campo, a fim de etnografar o Cais do Porto, ou seja, a partir deste momento, me dispus a “estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante” (GEERTZ, 1988)
Abordo o meu objeto de estudo através  do método etnográfico,  (pesquisa qualitativa), incorporando as técnicas de observação direta e participante e pesquisa direta e não participante, complementadas com a realização de entrevistas e com a produção de imagens fotográficas e  iconográficas. Destaco que entendo a observação participante como uma importante técnica de pesquisa, pois trata-se de “um processo pelo qual mantém-se a presença do observador numa situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O Observador está em relação face-a-face com os observados e, ao participar da vida deles no seu cenário natural, colhe dados. Assim, o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este contexto.”[2] 
Para esta monografia[3], o principal objetivo é  trabalhar com o depoimento de dois informantes, a fim de proceder a análise e a compreensão das suas relações de pertencimento que  constróem com o Cais do Porto de Porto Alegre. Sendo trabalhadores (um aposentado e outro ainda em atividade) deste espaço urbano, a sua relação com o Cais está voltada especialmente para uma atividade laboral que exerceram (ou que exercem) neste local. Eles lembram e recuperam informações de diferentes camadas e instantes de tempo que viveram no Cais do Porto. A análise destas informações também nos permite perceber importantes aspectos da dinâmica social e da organização físico-espacial deste espaço urbano, sendo este também um dos objetivos desta pesquisa. Dito de outra forma, pretendemos, entre outras coisas, caracterizar a singularidade deste espaço urbano, investigando as suas especificidades (arquitetônicas, urbanísticas, sociais e econômicas), a partir das construções mnemônicas e relatos dos informantes, bem como das suas observações sobre a organização físico-espacial, deste espaço urbano.
Esta monografia está dividida da seguinte forma.  Em um primeiro momento,  trago algumas informações introdutórias sobre o Cais do Porto de Porto Alegre e a sua atual organização físico-espacial. Trata-se de recuperar alguns aspectos históricos e sociais da configuração da cidade e do seu porto, conjugando-os com pressupostos teóricos que nos orientam na parte da investigação da espacialidade deste espaço urbano. O segundo momento deste trabalho está cunhado em cima de um esforço analítico sobre as prinicpais teorias e  autores que norteiam esta investigação científica. No momento seguinte a este, debruço-me especificamente sobre as informações trazidas pelos informantes, tentando fazer um esforço de análise e compreensão, além de descrevê-las.
Nos anexos, trago algumas imagens fotográficas que produzi durante as atividades de campo e que colaboram para o entendimento de alguns aspectos trabalhados no corpo textual desta monografia.











                              










1. O  CAIS  DO  PORTO  DE  PORTO  ALEGRE

A fim de introduzir algumas informações disponibilizadas pela historiografia sobre Porto Alegre e seus equipamentos urbanos, faremos aqui uma breve e rápida contextualização do aparecimento do Cais do Porto de Porto Alegre.
A proposta de se construir o Cais do Porto de Porto Alegre surgiu em 1911 e estava inserida no seguinte contexto sócio-ambiental: Com o crescimento da cidade e a necessidade crescente de se incrementar a infra estrutura que permitisse desenvolver as atividades econômicas e comerciais por vias fluviais, vieram os primeiros problemas ambientais observados já em 1866. Nesta época foi proibida a coleta de água no canal do Guaiba [4] que começava a ter as suas margens poluídas pelos excrementos da população depositados diariamente pelos cubeiros[5] e por outros dejetos produzidos a partir das inúmeras atividades ribeirinhas.
Juntamente com estes problemas ambientais, surgem as primeiras ocorrências de doenças contagiosas e pestes, como a epidemia de cólera que se abateu sobre a cidade entre 1875 e 1876. Assim passam a ser pensadas alternativas que colaborassem para o saneamento e a melhoria das condições de higiene do rio e das suas ribeiras.
Em conseqüência da reunião destes fatores,  surge uma alternativa, entendida na época como uma proposta ideal para estas necessidades de melhoramento e saneamento da cidade, a construção do Caís do Porto. Assim, no mesmo ano, começa a ser construído o atual Caís do Porto de Porto Alegre que tinha dois objetivos em especial:
1 - Unificar a porta de entrada da cidade, melhorando o aspecto para quem aportava em Porto Alegre, dado que na época, a maior parte do transporte de passageiros e de cargas acontecia por hidrovias e ferrovias.
2 -  Higienizar e normalizar [6]   [7] as atividades econômicas locais, uma vez que nesta época, por volta de 1900, existiam mais de 30 trapiches na área central da cidade, onde eram desenvolvidas inúmeras atividades comerciais.
   Ao ser concluído, o novo porto, além de melhorar o escoamento da produção industrial crescente, enfim podia ser considerado como uma nova e ampliada porta de entrada da cidade que se construía e se pretendia grande e desenvolvida.


1.1 A Atual Organização Físico-Espacial do Cais do Porto da Cidade de Porto  Alegre 
“Não podemos situar o homem e o espaço um do lado do outro. Não podemos dissociar o homem do espaço”  HEIDEGGER


As duas grandes categorias sempre em pauta para os cientistas sociais, espaço e tempo, dificilmente podem ser isoladas ou consideradas de forma parcial. Bachelard cita Gaston Roupnel neste sentido, afirmando que este último o fez entender “o lento ajuste das coisas e dos tempos, a ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço. Com a mesma clareza com que delineia figuras no espaço, a planície arada nos delineia figuras de duração.” (BACHELARD, 1988) Portanto, mesmo tendo a ênfase deste estudo repousada nas noções de temporalidade trazidas pelos informantes, não poderia deixar de também repousar a minha atenção analítica sobre a espacialidade de Cais do Porto. E se houver o problema de as categorias tempo e espaço se confundirem ou se perpassarem de forma equivocada, recorre-se a topoanálise, proposta de Bachelard que ensina: “Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações no espaço da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer ‘suspender’ o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço.”(BACHELARD, 1993)
 Na contextualização do surgimento do Cais do Porto de Porto Alegre é possível perceber alguns aspectos da interação do porto-alegrense com o seu rio e a sua estrutura portuária. Neste sentido, a contribuição teórica e metodológica de arquitetos, urbanistas e outros profissionais de áreas afins colaboram na intervenção antropológica em espaços urbanos singulares como o que aqui investigamos. Schulz[8] é um destes profissionais que por intermédio da arquitetura propõe uma nova maneira de abordar o problema do espaço arquitetônico baseado em três pressupostos básicos: I – O Espaço Arquitetônico pode ser interpretado como uma concretização de esquemas ambientais ou imagens que são uma parte necessária da orientação geral do homem ou de “seu estar no mundo.”; II –  O interesse do homem pelo espaço tem raízes existenciais, ou seja, deriva de uma necessidade de adquirir relações vitais com o ambiente que o rodeia para colocar sentido e ordem a um mundo de acontecimentos e ações; III – Sua orientação para os diferentes objetos pode ser cognitiva ou afetiva. (Norberg-Schulz, 1975)
Coletei várias evidencias físicas, interacionais e institucionais que me levam a demarcar, dentro deste espaço físico estudado, perímetros que delineiam o centro do Cais do Porto em contraste com outros perímetros que delineiam os lugares (periféricos) do Cais do Porto. A inspiração vem novamente de Schulz que ensina  “en lo que se refiere a la percepción espontánea, el espacio del hombre está ‘subjetivamente centrado’”(NORBERG-SCHULZ, 1975).
O centro do Caís do Porto é compreendido pela área que envolve o Pórtico Central, mais os Armazéns A, A1, B e B1. Os lugares (periféricos) estão no eixo que foge deste centro, ou seja, para a direita de quem entra pelo portão central, pela área compreendida entre os Armazéns B2 e B3, para a esquerda de quem entra pelo portão central, pela área compreendida entre os Armazéns A2 e A7.
Rio Guaiba
 



Centro
 
                                              Lugares                                    Lugares

Entrada Central
Do Cais do Porto

Avenida Mauá

No que se refere as suas principais características, poderíamos dizer que o centro do Cais é bastante vigiado, observado, cuidado e normalizado. Neste setor circulam diariamente diversas pessoas e automóveis, funcionários permanecem trabalhando, especialmente os que encarregam-se do controle e da vigilância dos espaços e dos prédios. O estado de conservação dos prédios, muros, cercas e portões é razoável e a iluminação é boa. Os lugares são marcados pela inexistência total de circulação de pessoas ou automóveis, estão totalmente desguarnecidos de qualquer tipo de aparatos de vigilância e observação. O estado de conservação dos prédios, muros, cercas e portões é deplorável e a iluminação é precária.









































2.  Revisão Crítica da Bibliografia

Neste segmento do texto tentarei, de forma sucinta, sistematizar os estudos teóricos dos autores pertinentes à temática desta monografia. O centro desta preocupação teórica está nas concepções de memória e de tempo-espaço, tendo em Bachelard a ênfase destas noções, por entender que o estudo da memória, mais do que a busca da rememoração, é a análise das superposições temporais, da percepção dos ritmos ordenados nas narrativas dos sujeitos que relacionam o pensamento dramático ao reconhecimento de si e de sua identidade.
A construção social da memória moderna tem intima relação com o idealismo que teve a sua contribuição para o  progresso do conhecimento, bem como para a construção dos instrumentos e concepções que foram penetrantes para esta análise. O idealismo, diz Lefebvre, se fecha sobre o EU, “Ele porta ao absoluto, uma pequena experiência fortemente suspeita: a consciência puramente subjetiva”.  Depois da Antigüidade, resgato Aristóteles e a sua “Teoria da Alma” para fazer a primeira referencia ao estudo da memória contemporânea.
A Teoria da Alma de Aristóteles começa com uma interessante definição. A Alma é todo o princípio vital de qualquer organismo, a soma de seus poderes e processos. Nas plantas, a alma é meramente uma força nutritiva e reprodutora; nos animais, é também a força sensitiva e locomotora; no homem, é também a força da razão e do pensamento. A Alma, como a soma das forças do corpo, não pode existir sem ele; os dois são separáveis apenas em pensamento, mas na realidade um todo orgânico. Uma alma pessoal e particular só pode existir no seu próprio corpo. Apesar disso, a alma não é material, tampouco morre por inteiro. Uma parte do poder tradicional da alma humana é passiva: está vinculada a memória e morre com o corpo que continha esta, mas a razão ativa, o puro poder de pensamento, é independente da memória, não sendo tocado pela decadência. A razão ativa é o universal, que se distingue do elemento individual do homem; o que sobrevive não é a personalidade, com suas afetações e desejos transitórios, mas a mente em sua forma mais abstrata e impessoal.
Buscando uma referência mais contemporânea sobre o estudo da memória, é inevitável a presença de Henri Bergson (1859-1941) em qualquer investigação neste campo de conhecimento. O próprio Bachelard vai afirmar que de Bergson ele tomará quase tudo com uma  exceção para a concepção bergsoniana da continuidade.
 Filósofo, autor de “Essai sur les données immédiates de la conscience(1889), Matière et mémoire (1896), Le Rire (1900), L’évolution créatrice (1907), tem o seu trabalho voltado para uma construção do conhecimento do tipo espiritualista.
Para Bergson, lembrar significa um movimento de vir de baixo, isto é, vir à tona o que estava submerso, sendo que essa volta ao passado combina-se com o momento atual e o presente. São portanto, pormenores da nossa experiência passada que perpassam as lembranças e trazem à tona um momento único já vivido. É um processo evocativo por meio da memória e refere-se a uma situação definida e individualizada [9].
O mundo exterior se impondo a todos como uma evidência,  ao menos nos seus começos, poderia reconhecer a supremacia do objeto e se orientar em direção de uma interpretação materialista. Mas justamente, a evidência e a importância dos fenômenos da natureza, obrigam a colocar as questões, ou seja, para explicar o real, o homem inventou o sobrenatural. Os espíritos  são no início mais forte que a matéria que lhes comanda.
A concepção de Memória em Bergson é a de uma memória pura, ou seja, o passado inteiro está no nosso inconsciente. Temos então a memória como conservação do passado, este sobrevive, quer chamado pelo presente sob as formas da lembrança, quer em si mesmo, em estado inconsciente.
Em Bergson, o método introspectivo conduz a uma reflexão sobre a memória em si mesma, como subjetividade livre e conservação espiritual do passado, sem que lhe parecesse pertinente fazer intervir quadros condicionantes de teor social ou cultural. A memória é uma força espiritual prévia a que se opõe a substância material, seu limite e obstáculo. A matéria seria, na verdade, a única fronteira que o espírito pode conhecer. A matéria levaria ao esquecimento. Ela bloqueia o curso da memória. Nessa grande oposição de memória e matéria, a última aparece como algo genérico, indiferenciado, espesso, opaco. Em um ponto, entretanto, esse obstáculo é vencido: naquele vértice do cone[10] invertido, ponto móvel da percepção que avança no presente do corpo, mas entreabre a porta às pressões da memória.
No estudo de Bergson defrontam-se, portanto, a subjetividade pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). A primeira filia-se a memória, à segunda, a percepção. Não há, no texto de Bergson, uma tematização dos sujeitos que lembram, nem das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas: como um sociólogo para se propor a preencher esse vazio. (Bosi p 16).
Matéria e Memória é uma das primeiras obras de Bergson, esta destaca-se pela relação com a investigação científica: orienta-se pela biologia.
Seu título demonstra que a estrutura da memória é considerada como decisiva para a estrutura filosófica da experiência. Na verdade, a experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com freqüência inconscientes, que afluem à memória. Bergson não tem, por certo, qualquer intenção de especificar historicamente a memória. Ao contrário, rejeita qualquer determinação histórica da experiência, evitando com isto, acima de tudo, se aproximar daquela experiência, da qual se originou sua própria filosofia, ou melhor, contra a qual ela foi remetida. É a experiência inóspita, ofuscante da época da industrialização em grande escala. Os olhos que se fecham diante desta experiência confrontam outra de natureza complementar na forma de sua reprodução espontânea. A filosofia de Bergson é uma tentativa de detalhar e fixar esta imagem reproduzida.
Segundo Bergson, para medir o tempo, a ciência fabrica o verdadeiro dado temporal, ou seja, a duração. Ao contrário do tempo da ciência, a duração não é quantitativa, mas apenas qualitativa. A mesma hora do relógio pode parecer interminável, se vazia ou se ocupada pelo tédio ou pela espera, e pode parecer um instante, se preenchida por uma vida psicológica intensa.
 Para Bergson, a consciência deriva de um processo inibidor da condução do estímulo à ação respectiva. Ação e percepção dependem do esquema corporal, do presente e do ambiente. Na percepção existe o vazio entre a ação e a reação, povoado de imagens que, trabalhadas, tornar-se-ão signos da consciência. Abre-se a possibilidade da indeterminação da ação consecutiva, complexificação e matização do pensamento. Bergson opõe percepção atual à lembrança. Este universo último não se constituiria da mesma forma que se disse se constituem as percepções e idéias.
A fim de ilustrar o que está afirmando, Bergson propõe “O cone da memória”[11]. A proposta é mostrar que, entre outras coisas, existe uma diferença evidente entre o espaço profundo e cumulativo da memória e o espaço raso e pontual da percepção imediata..
Na análise interna e diferencial da memória o passado conservado não atua no presente de forma homogênea. Bosi, trabalhando com Bergson, destaca que temos aqui dois tipos de memória, a memória hábito e a memória lembrança. A  Memória hábito é referente aos mecanismos motores, esquemas de comportamento guardados pelo corpo, dos quais se vale, muitas vezes, automaticamente. Adquire-se pelo esforço da atenção e pela repetição. Se dá pelas exigências da socialização, parte de nosso adestramento cultural e uma outra memória – referente à lembranças independentes de quaisquer hábitos, isoladas, singulares, ressurreições do passado. Caráter não mecânico, mas evocativo. Lembrança pura se atualiza na imagem-lembrança. Matéria latente nas zonas profundas do psiquismo (inconsciente). Não raro, a relação entre as duas memórias é conflitiva. A imagem lembrança se refere a uma situação definida e única, ao passo que a memória hábito já se incorporou às práticas do dia-a-dia, parecendo fazer um só com a percepção do presente.

Pensador presente em muitos dos  estudos de memória (obrigatório para uns, dispensável para outros), Maurice Halbwachs é o autor que passamos a contemplar a partir deste momento. Halbwachs, estudioso das relações entre memória e história pública, relativiza a ênfase na pureza da memória e propõe uma a Teoria Psicossocial no contexto do estudo da memória. Se, para Bergson, o confronto se dá entre a subjetividade do espírito (memória) e a exterioridade da matéria (percepção pura), Halbwachs vai afirmar que lhe falta uma tematização do sujeito que lembra, dos nexos interpessoais, das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas, enfim, o tratamento da memória como fenômeno social. 
Halbwachs não vai estudar a memória em si, mas os quadros sociais da memória. A memória do indivíduo depende de seu relacionamento com seus grupos de convívio e referência. Dando relevo às Instituições Formadoras do Sujeito, relativiza o princípio caro a Bergson de conservação do passado inteiro pelo espírito. Ao contrário, realça a iniciativa da vida atual, das representações que povoam a consciência atual do sujeito no desencadeamento do curso da memória. Na maioria das vezes, lembrar é reconstruir com imagens de hoje as experiências do passado, sendo a lembrança só excepcionalmente onírica. “A Memória não é sonho, é trabalho” (BOSI, 1994). Lembrar o passado no presente exclui a identidade entre imagens de um e de outro, propondo sua diferença em termos de ponto de vista.
Halbwachs amarra a memória da pessoa à do grupo, e esta à memória coletiva de cada sociedade. As imagens oníricas também não tem caráter puro. Sua aparente indeterminação  pelo presente que se deve à frouxidão relativa da consciência que os acompanha é compensada  pela intervenção constante que a auto-imagem do eu faz sempre que o passado remoto é sonhado ou evocado. De qualquer forma, é no sonho que o espírito está mais afastado da sociedade.
O instrumento socializador da memória é a linguagem. Aproxima e unifica no mesmo espaço histórico-cultural diversas dimensões de imagem. Espaço, tempo, causa e conseqüência, entre outras noções gerais coletivas e inerentes à língua estão presentes em todo tipo de representação, não havendo, assim, criações puramente individuais. As convenções verbais constituem o quadro mais estável e elementar da memória coletiva.
A interpretação social de Halbwachs à capacidade de lembrar é radical. Não se trata apenas de um condicionamento externo de fenômenos internos. Já no interior da lembrança trabalham noções gerais de filiação institucional, veiculadas pela linguagem.
Graças às noções gerais, imagens resistem e transformam-se em lembranças. Só se tornam imagens evocáveis as imagens do sonho sobre as quais nossa atenção e reflexão se fixaram quando acordados, enfeixadas antes que se esvaíssem.
O estudo das lembranças de pessoas idosas é um verdadeiro teste para a hipótese psicossocial da memória. Nelas é possível encontrar uma história social bem desenvolvida:  já atravessaram determinado tipo de sociedade, com características bem marcadas e conhecidas;  já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis, enfim, sua memória atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que o de quem ainda está absorvido nas contradições de um presente que solicita mais intensamente do que a uma pessoa de idade.
Halbwachs  opõe o sentido da evocação do velho ao do adulto: este, entretido nas tarefas do presente, não procura habitualmente na infância imagens relacionadas com sua vida cotidiana, sendo a hora de evocação a do repouso. Para ele, memória é fuga. O velho, ao lembrar do passado, não está descansando das lides cotidianas, mas se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma de sua vida. O que rege a atividade mnemônica é a  função social exercida atualmente por quem lembra. No momento em que o homem maduro deixa de ser membro ativo da sociedade, resta-lhe a função de lembrar, de ser a memória do grupo, da família, da instituição e da sociedade. Espécie singular de obrigação social que não pesa sobre indivíduos de outras idades. A pressão dos preconceitos e as preferências da sociedade dos velhos podem recompor a biografia individual e grupal ideologicamente.


Como citei no início deste trabalho, Bachelard representa uma referência especial para este estudo, em função da particularidade da sua proposta analítica e da sua expressividade intelectual. Portanto, vamos acompanhar agora alguns dos principais aspectos que recolhemos da sua vida e obra.
Gaston Bachelard (1884-1962), docente na Sorbonne (Prosa filosófica e historiador das ciências do conhecimento), autor de “A formação do espírito científico”, inova, revoluciona e altera significativamente as bases do pensamento científico ao escrever a “A dialética da duração”[12] e ao defender pressupostos como “ A continuidade psíquica não é um dado, mas uma obra”[13].
Bachelard, mais do que um filósofo, pois foi um fenomenólogo ou um arqueólogo da vida humana, propõe um estudo dos níveis de simbolização do real, das camadas das lembranças e associações. Portanto, pode ser nominado também como um “geólogo da imaginação” ou “alquimista da alma humana”. Epistemologicamente é adversário dos que chama “continuistas da cultura”,  ou seja dos que queriam que a passagem seja insensível do conhecimento comum ao conhecimento científico, do empirismo ingênuo ao racionalismo, da observação fortuita à experimentação calculada.  Ele critica aos continuistas históricos, que crêem facilmente reviver os eventos na continuidade do tempo, dando insensivelmente a toda história a unidade e a continuidade de um livro.  O tempo histórico é identificado como o tempo da leitura, e a realidade histórica ao livro que a descreve, a história da ciência se torna a experiência imaginário de um leitor.
Longe das concepções de continuidade bergsoniana, concebe o tempo como algo que se perde e nos perde, numa fragmentação incessante de instantes. Bachelard e Proust, analisam a descontinuidade temporal, pois o tempo é ritmo, camada, censura infinitamente reconduzida.  O tempo é vibração e exige uma análise ela mesma vibrante,  de maneira que seja uma simples tradução desta oscilação dos instantes em nós, sem  portar nenhuma restruturação conceptual. A análise do tempo deve ser uma ritmanálise[14], um ensaio de adequação jamais alcançada entre a palavra que resta e o momento que passa, uma simples relação de frases em fuga.
A ritmanálise é a harmonia do segundo, construção de uma harmonia explicativa que se superpõe à harmonia quase melódica do tempo e de sua descontinuidade.  A vida, nos seus progressos, é feita de tempos bem ordenados, ela é feita verticalmente, de instantes superpostos ricamente orquestrados, ela se re-liga a ela mesma, horizontalmente, pela ajusta cadencia dos instantes sucessivos unificados no papel. A linguagem fixa o movimento em estática, reduz a descontinuidade em frases bem ordenadas, impõe ao ritmo dos instantes o ritmo das palavras.
Critica a história normalizada representada por uma linha progressiva, símbolo da continuidade. Sim, existe uma continuidade que deve ser apreendida entre a razão e o imaginário.  Há uma continuidade que é uma ilusão, ela nos parece ser espontânea e de legitimidade.  E são nossas certezas imediatas que projetamos sobre a história para lermos no desenvolvimento da história a mesma continuidade que pensamos ter.  Para Bachelard a verdadeira prudência metodológica é de postular uma descontinuidade desde que estejamos certo que uma mudança se produz, enquanto que a tendência habitual é de postular uma continuidade subjacente.
Bachelard vai  propor uma filosofia do repouso, pois admiti o repouso como direito do pensamento e um dos elementos do devir. Em “A Dialética da Duração” externa a convicção de que o repouso está no âmago do ser, mesclado ao devir compartilhado deste último, deve ser sentido no nível da realidade temporal que fundamenta a consciência e a pessoa. Sendo que é na parte impessoal da pessoa que o filósofo deve buscar zonas e razões do repouso, para com elas fazer um sistema filosófico deste. A inteligência aparecerá como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência pura aparecerá como potência de espera e guarda, como liberdade e vontade de nada fazer.
Poderes negadores do espírito, dialética do ser na duração: o espírito poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados, fazer o tempo refluir sobre si mesmo para suscitar renovações do ser, retornos a condições iniciais. Ações positivas e negativas do tempo como igualmente importantes.
Ao esvaziar o tempo vivido daquilo que tem de excessivo, na tarefa de seriar os diversos planos de fenômenos temporais, se descobre que os fenômenos não duram do mesmo modo. A diversidade temporal dos fenômenos é imperfeitamente resumida numa concepção de tempo único e contínuo. Não há nenhum sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo. É necessário estudar os fenômenos temporais cada qual segundo um ritmo apropriado e um ponto de vista particular.
A postulação metafísica da existência de lacunas na duração é tarefa do estudo, e opõe-se a concepção contínua de Bergson. Examinando os diversos planos do encadeamento do psiquismo, percebemos as descontinuidades de sua produção. Assim, a continuidade psíquica não é um dado, mas uma obra.
De Roupnel toma a noção que ensina sobre “o lento a ajuste das coisas e dos tempos” e a ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço. A concepção de Roupnel - A noção de ritmo exprimiria melhor o que se passa – vai influir significativamente a obra de Bachelard. A noção de ritmo exprimiria melhor o que se passa. O que dura, permanece, é  o que tem razões para recomeçar. Ao lado da duração pelas coisas há a duração pela razão. Toda duração verdadeira é essencialmente polimorfa; a ação real do tempo reclama a riqueza das coincidências, a sintonia dos esforços rítmicos.
Bachelard critica duramente a concepção tradicional da historiografia, pois considera que a  continuidade que os historiadores comprovam ao lerem os eventos num ato continuo, não é nada mais que nossa emoção, nosso tormento, nossa melancolia e o papel da emoção não é talvez que de acalmar a novidade sempre hostil.  Dessa forma podemos supor que a vontade de postular um continuum subjacente não é outra coisa que o desejo de deixar subsistir no presente alguma coisa do passado que assegura, diminuindo o aporte da mudança observada afim que ela não pareça como total.  Este desejo pode ter o nome de medo. Medo do novo, medo da mudança, meda da mobilidade, a mobilidade estando indissociável da transformação.   É necessário de colocar em relevo aqui a presença de um julgamento moral, aliás confessado por Bachelard em outros lugares. A distinção que nos avançamos entre uma boa e uma ma continuidade ia neste sentido. O bem, termo assim freqüente sob forma adverbial em sua obra, é ligada ao movimento.  Igualmente ligado ao leve (leveza, superficial). De fato a má continuidade é introduzida pelo sentimento, a emoção, a alma. “A alma coloca a confusão desses sentimentos sob as determinações descontínua do espírito”.  Mas não devemos nos deixar  prender nessas fantasias morais ou imaginárias, esta má continuidade é também contrária a um só método. O medo do novo é uma vontade de fechar o sistema dos conhecimentos, de lhes fixar uma vez por todas, entretanto que lhe pesando sua aparência à mania não científica de colecionar as observações sem procurar a distinguir aquelas que podem ser significativa.
Existe a boa continuidade que encontramos no domínio científico. O pensamento científico é o princípio que dá o plus de continuidade a uma vida, ele é, entre tudo, rica de uma potência de coerência temporal ou, para empregar um conceito de Korzybski, o pensamento científico é eminentemente time-binding.  Nos reencontramos aqui, uma vez mais ao mesmo tempo, os termos de continuidade e de vida. Acrescenta-se aqui o verbo “ligar” e propõe a superposição seguinte: contra a ilusão continuista e o realismo  que o sustenta, parece que o tempo e o discurso cientifico são descontínuos. Conceito e instante jogam o mesmo papel.  É sobre o fundo dessa descontinuidade que pode se estabelecer, pela ligação, uma continuidade verdadeira e não ilusória, que esta continuidade comanda a vida do saber ou a linha geral da história das ciências.
O instante não é para ele de nenhuma forma a fronteira indiferente entre o passado e o futuro. Ao contrário, é o instante presente que funda ao mesmo tempo o passado e o futuro porque ele é pura passagem, puro movimento. “O passado se hierarquiza no presente sob a forma de um desenho, nesse desenho as lembranças decididamente envelhecidas são eliminadas. E o desenho projeto no futuro uma vontade já formada, já desenhada. O ser duradouro, tem bem no instante presente onde se decide o cumprimento de um desenho, o benefício de uma verdadeira presença” (BACHELARD, 1994).  O ser que vive o instante de forma dinâmica é justamente o que dura.  O movimento é possível graças a uma hierarquização,  a colocada em ordem do passado.  O tempo é uma ordem e não é outra coisa, e toda ordem é um tempo. O instante real supõe uma multiplicidade de elementos ligados segundo uma hierarquia. O desenho que faz do ser um ser duradouro procede, em engajando um psiquismo polimorfo numa ação escolhida com discernimento. A necessidade da pluralidade é regularmente afirmada nos contextos mais diversos. Assim é sempre a mesma conclusão: um processo homogêneo não é jamais evolutivo. Só uma pluralidade pode durar, pode evoluir, pode almejar o devir. E o devir  é uma pluralidade polimorfa. Se nossas tentativas de superposição são alguma coisa de ser admissível, é preciso deduzir que o conceito é ele mesmo uma multiplicidade ordenada, de mesmo que ele é dado na hierarquia em uma ordem mais geral.
A boa continuidade é então possível a partir de uma descontinuidade que não isola os elementos estáticos, mas dinâmicos.  E se o pensamento científico pode dar a vida uma continuidade é bem por que os conceitos não se cimentarão.  O Instante verdadeiro  é um tempo e cria uma verdadeira duração e a imagem verdadeira obra de continuidade. A palavra não existe em si, mas tem sentido num sistema que porta em poética o nome de complexos. A poética é sem dúvida uma disciplina, ela é talvez uma ciência. Ela  tem o rigor e a exigência, que é de testemunho e de purificação.
Para encerrar, reforçaria mais uma vez que, em Bachelard, a noção de ritmo é a noção temporal fundamental, pois os fenômenos da duração são construídos com ritmos  que não estão fundados numa base temporal regular e uniforme. Ensina Bachelard: “Para durarmos, é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, em sistema de instantes. (...) ”













































3.  O  QUE  DIZEM  OS   INFORMANTES  SOBRE  O  CAIS  DO  PORTO


“O velho não se contenta, em geral, de guardar passivamente que as lembranças o desperte, ele procura precisá-las, ele interroga outros velhos, compulsa seus velhos papéis, suas antigas cartas e, principalmente, conta aquilo de que se lembra quando não cuida de fixá-lo por escrito. Em suma, o velho se interessa pelo passado bem mais que o adulto, mas daí não se segue que esteja em condições de evocar mais lembranças desse passado do que quando era adulto, nem, sobretudo, que imagens antigas, sepultadas no inconsciente desde sua infância, ‘recobrem a força de transpor o limiar da consciência’ só então.”[15]

Em um outro momento desta pesquisa[16], optei por trabalhar com os depoimentos dos  entrevistados que, a partir das suas lembranças, construíam referências de pertencimento afetivo e social ao espaço do Cais do Porto de Porto Alegre, destacando o tempo vivido no passado a partir de um porto vivo (o porto antigo), rememorado diante da situação atual de um porto morto (o porto atual). Naquele momento, destaquei depoimentos do tipo: “ Ta morto!  Isso aqui morreu! Eu sou do tempo em que isso vivia cheio de navios, tinha uns ancorados aguardando espaço pra encostar pra carregar ou descarregar.”  (C. D.)
Destaquei que a memória do  porto vivo (antigo) remetia às lembranças das inúmeras atividades comerciais, econômicas e sociais ali vivenciadas pelos entrevistados. O Porto Antigo está articulado minemonicamente ao movimento de pessoas, a ocupação dos espaços, a produção de serviços, enfim aos símbolos - mitos da vida. Naquelas entrevistas, foi relatado, com um imenso sentimento de saudade, o tempo em que o cais recebia diariamente inúmeros navios de cargas e de passageiros, configurando assim uma dinâmica portuária intensa e bem articulada com a dinâmica social da cidade de Porto Alegre. Metáforas muito interessantes são utilizadas para lembrar deste período de intensa atividade do porto vivo como, por exemplo, a que fala de “uma plantação de navios”: “ A gente olhava assim aquela plantação de navio! Parecia uma plantação... tudo ancorado..., um batendo do lado do outro, esperando a hora de encostar no cais prá descarregar ou carregar. Navios estrangeiros, de toda nacionalidade! Navios grandes. Hoje só vem caíque, naviozinho pequeno, barquinho pequeno.” (M. C.)
Em um contraste direto com a referencia ao porto vivo, havia a referencia ao porto morto. A memória do  porto morto  remetia às lembranças das exíguas atividades comerciais, econômicas e sociais  vivenciadas atualmente. Destacava que o Porto, no seu formato atual, estáva articulado minemonicamente a inexistência de movimento de pessoas, a desocupação dos espaços, a ociosidade e a decrepitude dos equipamentos e das instalações, a apatia dos poucos trabalhadores que ainda permanecem atuando, enfim aos símbolos - mitos da morte. Agregava a isto as expressões “isto aqui morreu”, “o cais está morto”, pois eram utilizadas diversas vezes pelos entrevistados para falar da atual dinâmica do cais do porto e remete a estas características de não vida[17].
Para esta monografia, selecionamos apenas dois informantes, a fim de proceder a análise e a compreensão das suas relações de pertencimento que  constróem com o Cais do Porto de Porto Alegre. Sendo trabalhadores (um aposentado e outro ainda em atividade) deste espaço urbano, a sua relação com o Cais está voltada especialmente para uma atividade laboral que exerceram (ou que exercem) neste local. Eles lembram e recuperam informações de diferentes camadas e instantes de tempo que viveram no Cais do Porto.
O Engenheiro Abreu Lima possui 31 anos de trabalho no setor portuário, tendo sido subdiretor geral, diretor geral interino e administrador do Porto de Porto Alegre. Começou as suas atividades em 1952 como funcionário do DEPREC (Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais), tendo trabalhado alguns anos também na PORTOBRAS em Brasília. Além disso foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, onde lecionou por vários anos. Possuía um grande acervo de mapas, plantas, livros e demais materiais informativos sobre pesquisas hidráulicas, história de construção e desenvolvimento do Porto de Porto Alegre, projetos sobre enchentes e inundações, entre outros temas desta área. Não tendo mais espaço e condições de armazenamento para este acervo, decidiu doar para a biblioteca do IPH, onde se encontra até hoje. Apesar de já estar aposentado a muito tempo, ainda demonstra estar atualizado sobre os assuntos da sua área, através de contatos com colegas engenheiros do Brasil e do exterior e também através das pesquisas que faz na Internet.
Apesar de ter a idade bastante avançada (cerca de 70 anos), demonstra total lucidez e plena condição de lembrar de situações muito específicas e pontuais da sua carreira profissional. Cita, por exemplo, com muita satisfação uma intervenção (uma das mais importantes) da sua administração que perdura até hoje:
“Lembro da situação em que eu introduzi uma melhoria no sistema de balizamento da lagoa (rio), com uma modificação no sistema de lanternas que antes eram todas abastecidas com acetileno. Um sistema muito bem bolado, sabe ?! e feito aqui, aqui em São Leopoldo por este rapaz que está ai muito popularizado por este aéromovel, o Coester. Fez um sistema espetacular. É o sistema que ainda está sendo usado.”

Abreu Lima refere o tempo tendo como  referência a sua condição de trabalhador da área portuária, utilizando algumas expressões do tipo:
“Só para te dar uma idéia do tempo em que eu trabalhava (...)”

Durante toda a sua fala, destacou e até me solicitou que não aderisse a “uma visão saudosista” do Cais do Porto, pois considera que o porto deve ser avaliado a partir da sua principal função: transporte. Isto não remete a uma posição desprovida de sentimentos e emoções fortes, porém são emoções e sentimentos percebidos através de uma relação essencialmente de trabalho com o Porto. A sua atividade profissional, ou seja, a sua intervenção técnica neste local, que o diferencia de qualquer outra intervenção mais humanista, esta muito presente na sua fala. Neste sentido afirmou:
“Porto nenhum morre, essa coisa que o porto morreu é besteira. (...)
Qual era o interesse das pessoas ali no porto? Transporte, transporte de passageiros. Isto não existe mais. Agora, o que realmente interessa para o porto, para o navio? Carga. A carga existe, ela está aí, ela precisa ser buscada, estimulada, aparecendo carga no porto o navio vem.”

Em determinado momento fala do corporativismo das categorias profissionais da sua área de atuação, destacando:

“Qual o problema de ser corporativo ? Existem tantas corporações no Brasil”


   O assunto que mais o motivou foi a questão das cheias e os sistemas de proteção contra enchentes adotados em Porto Alegre e em outros países como os Estados Unidos. Lançou mão de materiais (relatórios, plantas e pesquisas da Internet) para falar da sua posição favorável quanto a permanência do Muro da Mauá como um dos instrumentos de proteção da cidade contra as cheias. Pelo menos até o momento em que ele possa ser substituído por um outro dispositivo tão eficaz quanto o atual. Demonstra total conhecimento de todo o sistema de contenção de cheias de Porto Alegre, citando, além do muro, os demais dispositivos de segurança com os seus respectivos fins (reservatórios nos Rios Jacuí e Taquari, aterros como o da Avenida Beira Rio, dicks de contenção, comportas, etc.). Afirma:
“Creio que um dispositivo sozinho não dê conta do recado, então eu acho que o sistema tem que ser uma combinação de vários dispositivos, além de estimular o reflorestamento nas cabeceiras, evitar o açoriamento dos canais (...) são uma série de coisas que devem ser trabalhadas em conjunto (...)”

 Salienta que o problema das enchentes está presente em todo o mundo e está intimamente relacionado com a relação do homem e o seu meio ambiente (rios, mares, córregos, etc.), pois a agressão ao meio é recorrente em todas as partes do globo, então o rio “diz”: 
“Mexeste no meu plano de cheias, agora vou voltar para ele.”

Destaca um engenheiro dos EUA (Corpo de Engenheiros do Exército Americano de onde recebe alguns relatórios) que trabalha no monitoramento de enchentes para o século 21, de onde tira inspiração para a sua própria tese que está baseada na idéia de que o procedimento mais adequado para evitar novas catástrofes no mundo inteiro, provocado por cheias e enchentes, seria a adoção de um procedimento (relativamente) simples: devolver para os rios o seu plano de cheias. Diz que o maior erro da intervenção humana nas áreas de ribeiras de rio foi a ocupação do plano de cheias, portanto o mais sensato seria devolver esta área para os rios.




 


                                                       Plano de Cheias

                                                                    Leito Normal do Rio




Valdemir Lima Fernandes tem 36 anos, é servidor público estadual, policial civil, (Departamento Estadual de Investigações Criminais) e trabalha em turnos de 24 horas (plantões alternados que divide com mais três colegas) no cais do porto no atendimento à ocorrências policiais. Diz que, além de a sua área de intervenção ser toda a extensão do Rio Guaiba, também possui outras atividades como  professor de mergulho, entre outras atividades que cita mais adiante:
“Trabalho no porto na área de combate ao crime na água ou sobre a água ou até debaixo d’água.(...)
Nós estamos aqui a muito tempo por causa da ilha do presídio. Nós somos os egressos da ilha do presídio. A ilha do presídio era do controle da polícia civil. Com o encerramento das atividades lá, viemos para cá com a atribuição de patrulhar toda a bacia (...)
Se houver crimes nas ilhas, nós atendemos. Se necessário, solicitamos apoio do DEPREC.”

Valdemir exalta as suas potencialidades e qualidades profissionais, afirmando que possui vários cursos profissionalizantes que o qualificam para esta atividade no porto (mecânico de embarcações, motorista profissional, instrutor de mergulho e pára-quedismo, etc.) e que, além disso, possui outras habilidades nas áreas dos esportes aquáticos e náuticos. Devido a esta sua qualificação, afirma que até já tentou sair deste local de trabalho, porém não existe outro profissional com a sua qualificação profissional para substitui-lo. Neste sentido, afirma:
“Trabalho aqui a 12 anos, mas estou a disposição (do Estado do RS) para operações em todo o Estado, já trabalhei em todo o Estado, onde tem calamidades e situações de emergência.”
Quando pergunto sobre a sua sensação de trabalhar no porto, relata:
“A navegação no inverno é ruim, por que tem vento e tem chuva, ai da vontade de não fazer, porque é frio, né ! Aqui tem dias que o vento arranca as telhas (aponta para o telhado de um galpão).”

Relata as enchentes que presenciou, destacando que as mais fortes foram as de 1983 e 1986, situação em que trabalhou intensamente no socorro aos flagelados oriundos das ilhas do Guaiba:
“Minha função é coordenar o recolhimento de flagelados em toda a bacia. Buscando gente, levando ranchos, trazendo doentes, transportando pessoas com dificuldades, (...) Em 83 trabalhamos dez meses sem parar. Sábado, Domingo, direto, sem parar, sem folga em nenhum dia. Em 83 a água passava por cima desta pedras aqui (aponta para a beira do rio). Também coordenei aqui no Delta muitas campanhas de vacinação ”

O informante demonstra que percebe a sua atividade profissional como fato definidor da sua relação com o rio e com o porto e é através desta atividade que ele constroe as suas impressões deste espaço urbano:
“Então eu conheço a bacia (e o porto) desta forma, né !  Vacinando o pessoal, atendendo ocorrência, buscando algum crime nas ilhas. Derrepente alguém mata alguém, arrombamento de residências, furtos em casas, já deu também furto de gado nas ilhas. Dá de tudo um pouco, agora as ocorrências estão mais calmas. O acesso por terra para as ilhas está mais facilitado, então diminuiu o nosso trabalho por água. (...)
Só existe um posto policial na Ilha da Pintada, então nós tínhamos  um posto policial ambulante (flutuante) instalado em uma lancha que visitava as ilhas regularmente, averiguando os problemas.”

Fala com tranqüilidade da freqüência com que aparecem cadáveres boiando no rio, afirmando que entre os meses de janeiro e fevereiro a incidência aumenta. Diz que o porto é muito procurado por pessoas com problemas psíquicos e suicidas que freqüentemente aparecem caminhando sem destino certo até a beira do rio e que alguns tentam a morte lançando-se ao rio.
Perguntado sobre qual das atividades que realiza com maior satisfação, responde:
“A atividade mais prazerosa é a busca de provas de crimes em baixo da água. Só para descobrir uma quadrilha de ladrões de carros, eu mergulhei durante 15 dias e encontrei vários chassis de carros e motos que foram jogados no rio.”

Demonstra amplo conhecimento da dinâmica local em terra, água e ar, ao comentar aspectos das embarcações que passavam por nós durante a entrevista, destacando o nome dos barcos, a sua função (carga, rebocadores, turismo, etc.), falando dos acidentes em terra com automóveis e pessoas que já cairam no rio e conversando sobre as manobras dos aviões que decolavam do Aeroporto Salgado Filho e faziam as suas manobras por sobre as nossas cabeças.

Tomando os dois depoimentos em um todo, podemos verificar claramente aspectos comuns entre as falas de Valdemir Fernandes e Abreu Lima e outros aspectos que estão presentes em um e não em outro e vice versa.
A forma e o tipo de relacionamento que ambos constróem com o Cais do Porto de Porto Alegre é a mesma, ou seja, possuem uma relação com este local dada segundo as especificidades das suas atividades de trabalho que desenvolvem ( ou desenvolveram) neste local. Relativizadas, com as devidas proporções, em função das diferentes carreiras e qualidades profissionais que possuem, Abreu Lima é um engenheiro civil e Valdemir é um policial, os dois informantes referem sempre que a sua impressão e o seu conhecimento do Cais do Porto é dada por esta sua interação essencialmente laborial com este espaço da cidade. Situação totalmente antagônica teríamos, por exemplo, se um deles fosse engenheiro e o outro artista plástico, poeta, escritor ou outra coisa do gênero.
A posição diante desta experiência relacional com o Cais do Porto é diferente no depoimento de Abreu Lima, quando relacionado com o depoimento de Valdemir Fernandes. Lima vive com a situação de quem já encerrou a sua carreira, externa a posição do dever cumprido e a sua fala vai sempre no sentido: “eu fiz ...”, “eu realize ....”, “no meu tempo de trabalho ....” Fernandes, profissional ainda em atividade na área portuária, fala de seu cotidiano de trabalho, das sensações de atividades que ainda realiza e que pretende ainda aperfeiçoar, ampliar ou simplesmente perpetuar. Neste sentido, Bosi, trabalhando com a concepção psicossocial de Halbwachs, destaca:
“Para o adulto ativo, vida prática é vida prática, e memória é fuga, arte, lazer, contemplação. É o momento em que as águas se separam com maior nitidez. Bem outra seria a situação do velho, do homem que já viveu sua vida. Ao lembrar o passado ele não está descansando, por um instante, das lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida.” (BOSI, 1994)
Contudo, apesar de reconhecer a amplitude do pensamento de Halbwachs e a sua importância para os estudos de memória, acredito que, a fim de vencer as superfícies e penetrar na essência deste conhecimento transmitido pelos informantes é necessário lançar mão do aparato teórico bachelardiano. Portanto, relembramos que para ter a impressão de que duramos, precisamos substituir nossas recordações, num meio de esperança ou de inquietação, numa ondulação dialética. Não há recordação sem esse tremor do tempo, sem esse frêmito afetivo. Mesmo nesse espaço que acreditamos pleno, a evocação, a confidência, a narrativa ocupam o vazio dos tempos inativos; sem cessar, quando recordamos, estamos misturando, ao tempo que serviu e ofereceu, o tempo inútil e ineficaz.  Reviver o tempo desaparecido é apreender a inquietude de nossa morte. Consciência de fragmentos de morte e de nada no decorrer de nossa vida. Não se pode mais atribuir continuidade ao tempo ao pressentir tão vivamente os desfalecimentos do ser.
Bachelard tem uma frase em “A Dialética da Duração” que trago para o encerramento deste bloco, pois ela fala mais do qualquer outra frase que eu pudesse aqui construir:
“A Vida, em seus sucessos, é feita com tempos bem ordenados; é feita, verticalmente, de instantes superpostos ricamente orquestrados; liga-se a si mesma, horizontalmente, pela justa cadência dos instantes sucessivos unificados numa função.” (BACHELARD, 1950)
 







                                                                                                   [18]













CONCLUSÃO

Este estudo antropológico está ainda em andamento, pois, como foi colocado no início deste, hoje na condição de mestrando do PPGAS / IFCH / UFRGS, venho trabalhando constantemente neste pesquisa. Portanto, as conclusões que aqui apresento não são  finais e acabadas. O que aqui apresento são, na verdade, alguns pontos conclusivos que já foi possível acessar até a atual fase desta investigação científica.
A singularidade deste espaço urbano estudado: o Cais do Porto da Cidade de Porto Alegre, está presente no imaginário dos portalegrenses, de um modo geral, e, de uma forma muito especial, no imaginário dos trabalhadores do Porto (em atividade e inativos). Como pode-se constatar através das lembranças articulados pelos informantes que entrevistei, o porto possui toda uma dinâmica interna própria, uma cultura particular, uma economia e uma sociabilidade muito específica, muito sua, portanto, particular e singular. A duração do tempo portuário e a organização do seu espaço talvez sejam as duas maiores evidências desta singularidade.
Experimentei por diversas vezes uma determinada experiência de “Choque”[19] entre a velocidade e a temporalidade sentida na área intraportuária em relação ao que sentia no momento seguinte a saida do porto[20]. O contraste, por exemplo, entre a corrida intensa e desmedida da urbanidade do centro de Porto Alegre (automóveis, pessoas, etc.), especialmente da Avenida Mauá e adjacências em relação a tranqüilidade, ao ritmo pausado e regrado que se tem  dentro do porto é muito grande, gritante e, até suponho que para muitos, agressivo.
A beira do rio observa-se o deslocamento das embarcações que lentamente desenham formas geométricas na água, dando a impressão de que a sua velocidade médio-ideal é bastante antagônica daquela que a nossa cultura urbana solicita e imprime. Parece que as estas pessoas não “perdem” ou “ganham” tempo, elas “apenas” vivem o seu ritmo que não é o nosso ritmo médio-ideal urbano. Em terra, na área portuária acontece algo análogo, pois o deslocamento tanto de pedestres como de veículos não está organizado essencialmente sob a norma das regras de trânsito, não é vigiado pelos controladores eletrônicos de velocidade (caetanos e pardais), nem é balizado por sistemas físicos de contenção do tipo sonorizadores, quebra-molas, etc.
Todos estes fatores reforçam a nossa tese da singularidade deste espaço urbano, refúgio para “dementes”, como foi relatado por um entrevistado, local de refúgio e abrigo não só para embarcações, mas também para seres humanos que não encontrando outro local para o seu repouso ou para viverem os seus devaneios, se dirigem para o cais do porto.
 As  diversas informações colhidas juntos aos meios de comunicação de massa da cidade (Rádio, televisão e Jornal) também caminham neste sentido. É grande o número de comerciais de TV, por exemplo, que utilizam o porto para produzirem as suas imagens publicitárias. Os armazéns, guindastes, muros “contracenam” com modelos, atores e atrizes famosos nacional e internacionalmente, destacando e reforçando as características deste espaço urbano que representou e continua a representar uma referência muito forte para a cultura e para a história da cidade de Porto Alegre. É também grande o número de vezes que entrevistas publicadas nos jornais tematizam sobre o porto. Por vezes é um novo projeto de lei que propõe recuperar aquele espaço, ou uma viagem do secretário dos transportes que vai até Brasília para solicitar mais verbas para as atividades portuárias, enfim o Cais do Porto de Porto Alegre aparece muito na mídia nos mais diversos formatos, pelas mais diversas razões e com um variado tipo de finalidades.
A par da mídia, acredito que os  entrevistados são portadores (guardiões) de uma definição de tempo construído segundo as suas lembranças articuladas num cotidiano vivido de trabalho com o porto. Portanto, este espaço urbano é singular e os portadores da sua memória também o são, pois  com “o esforço de rememoração criam  tempos e espaços específicos que grudam os sujeitos que lembram a tempos e espaços singulares”. (ECKERT, 1997) Deste modo, surgem maioria das construções mnemônicas que remetem as fortes sensações e relações de pertencimento dos trabalhadores e ex-trabalhadores com o cais do porto de Porto Alegre.
A referência a continuidade e a descontinuidade do tempo e dos espaços surge como um ponto chave para a nossa investigação (especialmente para aqueles depoimentos que citamos e que forma trabalhados no salão de iniciação científica). Encontramos em Bachelard e na sua dialética da duração algumas respostas interessantes. Segundo a sua proposta de empenharmos o que denominou de “ritmoanálise”, percebemos que o que vivemos são estruturas espaço-temporais, ou seja, o eterno drama da reatualização do passado no presente[21]. Neste sentido a antropóloga Cornelia Eckert  propõe: “sugiro uma etnografia da lembrança da duração e não uma etnografia da lembrança do passado” (ECKERT, 1997)
A conclusão de que existe  uma “alma portuária” presente neste espaço e neste tempo é uma das conclusões, dentre as demais, que mais nos perplexifica. Encontramos Arquitetos, urbanistas, sociólogos e antropólogos falando desta “alma”[22] nas referências que fazem sobre diversas cidades, praças e outros espaços e lugares urbanos. A “alma” (ou as almas) do Cais do Porto podem ser sentidas especialmente nas zonas mortas, lugares onde não há mais vida, conforme referências dos entrevistados.   
No que tange ao processo de revitalização dos “velhos” portos, parece que esta é uma prática que acontece no mundo inteiro, segundo o que investigamos. Há, entre urbanistas, arquitetos e demais profissionais desta área uma espécie de necessidade em executar urgentemente uma inscrição do novo sobre o velho, através das intervenções urbanísticas e arquitetônicas. Esta é uma tendência mundial, global. Portanto, aponta-se para o fato de que o reordenamento e as remodelações propostos para o Cais do Porto da Cidade de  Porto Alegre são produtos de um processo de mudanças históricas, econômicas e sociais que extrapolam as fronteiras citadinas locais, estando inseridas no corpo de uma cosmovisão globalizada e globalizante (complexa e moderna) que vem determinando a organização e reorganização dos grandes espaços urbanos contemporâneos .      











BIBLIOGRAFIA

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10.FRANCO, Álvaro. Porto Alegre – Biografia de Uma Cidade. Porto Alegre: Ed. Tipografia do Centro S. A . (final do século / inicio deste)

11.FRANCO, Sérgio da Costa. Guia Histórico de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da Universidade / PMPA, 1988.

12.________ , ___________ . Porto Alegre e Seu Comércio. Porto Alegre: Ed. Associação Comercial de Porto Alegre, 1983.

13.GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1978.

14.GOITIA, Fernando Chueca. Breve História do Urbanismo. Madrid: Ed. Aliança Editorial, 1970.

15.JACOMINI, Jaques. Um Olhar Etnográfico Sobre O cais do Porto da Cidade de Porto Alegre: aspectos da historiografia, da dinâmica social e da espacialidade do Porto de ontem, de hoje e de amanhã, articulados com os aspectos da historiografia, da dinâmica social e da espacialidade de uma cidade que tem porto até no nome. Artigo

16.NORBERG-SCHULZ, Christian. Nuevos Caminhos De La Arquitectura - Existencia, Espacio y Arquitectura. Barcelona: Ed. Blume, 1975.

17.ROCHA, Gilmar. Cidade à Deriva. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 1997.

18.SPALDING, Walter. Pequena História de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1967.

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21.ZIMMERMANN, Sérgio Luis Duarte. Porto dos Casais. Exposição sobre o Projeto do Arquiteto ALBERTO ADOMILLI



[1] Projeto coordenado pelas Professoras Dras. Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha / Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) / Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) / Universidade Federal do Rio Grande DO Sul (UFRGS)
[2] Lévi-Strauss, Aula Inaugural  citado por ZALUAR, 1955 em Desvendando Máscaras Sociais.
[3] Esta monografia representa, além de uma atividade regular de encerramento das atividades proposta pela Disciplina “Individualismo, Sociabilidade e Memória”,  um esforço de trabalhar com um recorte de uma pesquisa maior que culminará com a realização da minha dissertação de mestrado.
[4] Segundo denominação geográfica, o Rio Guaiba é lago, pois une dois grandes volumes de águas navegáveis, o Rio Jacuí e a Lagoa dos Patos. O Jacuí desce em turbulência de sua nascente localizada no Planalto, cerca de 400 metros acima do nível do mar. Ao atingir a Depressão Central, a 100 metros de altitude, suas águas correm para o leste e vão diminuindo a velocidade, de acordo com o suave declive da planície. No trajeto final, próximo a Porto Alegre, o Jacuí recebe as águas do Taquari, do Caí, do Sinos e do Gravatai, formando um delta, uma enorme bacia de decantação onde se acumula a terra arrancada das encostas do Planalto. Essas águas calmas e barrentas são despejadas no Guaíba, apenas cinco metros acima do nível do mar. O Guaiba desemboca na Lagoa dos Patos que lança suas águas no Oceano Atlântico, 250 Km ao sul.
[5] Cubeiros - indivíduos que carregavam e limpavam os “Cubos”, recipientes onde eram armazenados os excrementos das residências mais abastadas. Uma vez cheios, eram levados até as margens do rio pelos escravos (e depois pelos funcionários da prefeitura que assumiram este serviço) e ali descarregados e lavados para voltarem a ser utilizados nas residências.
[6] Um relatório da época dizia: “É preciso melhorar o porto tanto do ponto de vista econômico como estético e sobretudo higiênico.”
[7] O princípio de “isolar espacial e temporalmente implica reunir ordenadamente”, difundido pelo movimento que se conhece como “medicalização (ou normalização / higienização) das cidades” observados no Brasil durante a segunda metade do século passado é abordado de uma forma bastante interessante por Roberto Machado Et All  em “Danação da Norma : Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil”.
[8] Schulz chama a nossa atenção para o fato de que foi HEIDEGGER o primeiro pensador a trabalhar com a noção de que “a existência é espacial.” Portanto, Merleau-Ponty, Bachelard e Bollnow devem muito a Heidegger.
[9] Neste sentido, ver “O Cone da Memória” In. BOSI, Ecléa Memória e Sociedade - lembranças de velhos 4 ed., pg. 46-8
[10] idem
[11] BOSI, Ecléa Memória e Sociedade - lembranças de velhos 4 ed., pg. 46-8

[12] BACHELARD, Gaston A dialética da duração  Ática, 2ª ed., São Paulo, 1994, 135p.
[13] Bachelard afirma que “a nossa primeira tarefa é a postulação metafísica da existência de lacunas na duração, isto é uma tarefa do estudo, e opõe-se a concepção contínua de Bergson. Assim, a continuidade psíquica não é um dado, mas uma obra.”
[14] INSPIRADO Em “La rythmanalise” de LÚCIO PINHEIRO DOS SANTOS (Professor de Filosofia da Universidade do Porto / Brasil) , publicação da Sociedade de Filosofia e Psicologia do Rio de Janeiro, 1931), comenta: “Há lugar em psicologia para uma ritmanálise, assim como se faz psicanálise.” A idéia é de regulação dos tempos psíquicos a partir de uma desorganização direcionada a quebrar as falsas permanências e durações mal feitas. Ou como disse o Próprio Bachelard :“É preciso curar a alma que sofre por meio de uma vida ritmica, por um pensamento rítmico, por uma atenção e um repouso rítmicos. É antes de tudo desembaraçar a alma das falsas permanências, das durações mal feitas, desorganizando-a temporalmente.”

[15] M. Halbwachs, Les cadres sociaux de la mémoire. In.  Bosi
[16] Momento em que apresentei esta mesma pesquisa, em um estágio de investigação anterior a este, no X Salão de Iniciação Científica, realizado em 1998 na UFRGS.
[17] Além desta lembranças dicotômicas vida e morte, os entrevistados trouxeram outros elementos muito interessantes sobre o Cais do Porto de Porto Alegre na sua convivência com os espaços urbanos que o circundavam. Ouvimos vários relatos que falam da existência de uma forte relação entre o Mercado Público de Porto Alegre (Antigo Mercado das Frutas) e o Porto de Porto Alegre, dada a sua proximidade físico-geográfica e a sua afinidade comercial e social. Vários permissionários do Mercado Público são de origem portuguesa, estes relatam com emoção a sua chegada na cidade, em um primeiro contato bastante intimo e sentimental com o Cais do Porto:
“ O primeiro passo que eu dei ali, o primeiro degrau que eu pisei em Porto Alegre foi no Cais do Porto, aqui atrás do Mercado, e dali era só atravessar o Mercado Livre, que era o Mercado das Frutas, e a Júlio de Castilhos e eu estava dentro de casa já. Então aquilo ficou. Agora, tu chega ali tá um baita de um muro. E auto prá la, auto prá ca. Tu fica louco. Isso fica dentro da gente”. (S. A.)
Esta relação do Mercado Público com o Cais do Porto é alterada com a construção do Muro da Avenida Mauá, como podemos perceber nos relatos seguintes:
“Aqui tinha bastante movimento, mas não tinha esse paredão ai.  A gente saia livre. Só saia ali, tinha lugar prá sair. Não e como esse paredão, tem tudo trancado. Só pode entrar por lá ou por aqui ”. (C. B.)
“O muro trouxe realmente um certo prejuízo para a cidade, pois antes você chegava ao cais por vários lugares. Hoje, não. Você chega ao cais por zonas, mas o muro não tem nada a ver com esta visão romântica, porque nem sequer o por do sol e mais bonito naquela direção.” (A. L. E)


[18] Imagem genérica que criei para ajudar a pensar a proposta de Bachelard dos ritmos, ondulações e instantes.
[19] Conforme concepção trabalhada por Simmel e Benjamim, ao trabalharem sobre as formas de sensibilidade e socialização do homem moderno na metrópelo.
[20] Nos primeiros relatos de campo eu já destacava estes aspectos da dinâmica deste local: “A travessia da Av. Mauá (em direção ao Cais do Porto) é, sem nenhuma dúvida, “uma manobra bastante arriscada”. Neste local o transito de veículos é muito grande e a velocidade média dos automóveis, caminhões e coletivos também é alta em função da avenida ser extensa (uma grande reta),  larga (com 3 faixas de rolagem) e não existir nenhum dispositivo inibidor da velocidade (com exceção do semáforo). Existe uma faixa de segurança e uma semáforo quase em frente a entrada principal do Caís do Porto, o que, teoricamente, facilitaria a travessia dos pedestres, no entanto nem sempre é bem assim. Os motoristas costumam aproveitar ao máximo o tempo destinado para a sua travessia, transitando no momento em que o sinal fica no amarelo e até nos primeiros instantes em que o sinal aponta a cor vermelha, ou seja, propõe a sua parada e permite a passagem para o pedestre
[21] Bachelard afirma: Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante,”
[22] Segundo SPENGLER “o que distingue a cidade de uma aldeia (ou vila) não é a sua extensão, não é o seu tamanho, se não a presença de uma alma citadina (...) O Verdadeiro milagre é quando nasce a alma de uma cidade. Subitamente sobre a espiritualidade geral da cultura, destaca-se a alma da cidade como uma alma coletiva de uma nova espécie, cujos últimos fundamentos permanecem para os outros em eterno mistério. E uma vez desperta, se forma um corpo visível. A coleção de casas da aldeias (ou vila), cada uma das quais com sua própria história, se converte em um único conjunto. E este conjunto vive, respira, cresce, adquire um rosto familiar e uma forma e uma história internas. A partir deste momento, apesar das casas em separado, do tempo, da catedral e do palácio (do governo), constitui a imagem urbana em sua unidade o objeto de um idioma de formas e de uma história específica que acompanha em seu curso todo o ciclo vital de uma cultura ”

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