É necessário acreditar, afirma o
mega-empresário e apresentador de televisão, Sílvio Santos, ao apresentar um
dos seus artigos de venda. Se não acreditar, nem comprem, ratifica o empresário
com o “Título de Capitalização” denominado Tele-Sena nas mãos diante das
câmaras de televisão do SBT. Milhões de brasileiros acreditam no seu produto e
compram a Tele-Sena, confiando que ali pode estar uma oportunidade para “mudar
de vida”. Alguns ganham, a grande maioria, apesar de Ter acreditado, não ganha
qualquer importância em dinheiro e continua acreditando. Será que o povo
brasileiro gosta de ser enganado mesmo ?
O empresário Silvio Santos é um pilantra e está enganando as pessoas ?
Ou Será que este é apenas mais um jogo de azar e adere a ele quem bem entender
e assim o decidir ?
Carlo Ginzburg chama a nossa reflexão para o
que denominou de “Paradigma Indiciário”, afirmando que este é uma espécie de
modelo epistemológico (ou paradigma) que surge no final do século XIX e para o
qual ainda não se deu a devida atenção. Inicialmente, o autor cita Morelli que
com um método particular (Método Morelliano) propõe investigar a originalidade
das obras de arte, com base nos seus pormenores e nas especificidades que
muitas vezes passam desapercebidas pela maioria das pessoas comuns. A dedicação
e o afinco deste médico/crítico de arte era tanta que “qualquer museu estudado
por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um Museu Criminal” (Página 145).
O seu método foi comparado ao trabalho de Sherlock Holmes: “O Conhecedor de
arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado
em indícios imperceptíveis para a maioria.” (Página 145)
Sobre o método de Morelli, inicialmente
destacaria que a sua proposta de catalogar detalhes das obras de arte que
investigou remonta a uma prática bastante difundida desde Aristóteles A
classificação filosófica de Aristóteles distribuiu as categorias em dez gêneros
supremos:
1.
SUBSTANCIA - homem, cachorro, pedra,
casa, ...
2.
QUALIDADE - azul, virtuosos, ...
3.
QUANTIDADE - grande, comprido, 2Kg, ...
4.
RELAÇÃO - mais pesado, escravo, duplo,
mais barulhento, ...
5.
DURAÇÃO - ontem, 1970, de manhã, ...
6.
LUGAR - aqui, Brasil, no pátio, ...
7.
AÇÃO - correndo, cortando, falando, ...
8.
PAIXÃO OU SOFRIMENTO - derrotado,
cortado, ...
9.
MANEIRA DE SER - saudável, febril, ...
10.
POSIÇÃO - horizontal, sentado, ...
No texto de Ginzburg é mencionada a semelhança
de proposta metodológica entre Morelli e Freud e é destacada a influência de o
primeiro provocou no segundo. Em função disto, Morelli ganha “um lugar especial
na história da formação da psicanálise.” (Página 148)
Em seguida, parte dois, o autor lembra um pouco
dos aspectos da relação do homem com o seu meio físico e social, desde os
primórdios da civilização: “Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e
classificar pistas infinitesimais como fios de barba (...) Na falta de uma
documentação verbal para se por ao lado das pinturas rupestres e dos artefatos,
podemos recorrer às fábulas (...)” (Página 151)
Segue, falando da narração de fatos e acontecimentos vivenciados,
destacando que “Talvez a própria idéia de narração tenha nascido pela primeira
vez numa sociedade de caçadores (...)” (Página 152)
A invenção da escrita revoluciona as
possibilidades de comunicação do homem, intervindo nas suas formas de interação
social. Neste sentido, o autor destaca: “Notou-se, em particular, como a
invenção da escrita modelou profundamente a arte divinatória mesopotâmica. Às
divindades, de fato, era atribuída, entre outras prerrogativas dos soberanos, a
de se comunicar com os súditos através de mensagens escritas.” (Página 153)
Na página 154, o autor amarra as sua idéias
desenvolvidas no texto até este ponto: “Em suma, pode-se falar de paradigma
indiciário ou divinatório, dirigido, segundo as formas de saber, para o
passado, o presente ou o futuro. Para o futuro- e tinha-se a arte divinatória
em sentido próprio -; para o passado, o presente e o futuro – e tinha-se a semiótica
médica na sua dupla face, diagnóstica e prognóstica -; para o passado – e tinha-se a
jurisprudência. Mas por trás desse paradigma indiciário ou divinatório,
entrevê-se o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano:
o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa.”
No ponto III, Carlo refere um tapete para
reafirmar o paradigma que vem trabalhando neste texto: “Poderíamos comparar os
fios que compõe esta pesquisa aos fios de um tapete. (...) O tapete é o paradigma
que chamamos a cada vez, conforme os contextos, de venatório, divinatório,
indiciário ou semiótico. Trata-se, como é claro, de adjetivos não-sinônimos,
que no entanto remetem a um modelo epistemológico comum, articulado em
disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo empréstimo de
métodos ou termos-chave.” (Página 170)
Mário Vargas Losa, em artigo denominado “A
Mentira e a Verdade na ficção”, fala dos limites da verdade e da ficção em
obras literárias, em especial nos romances. Para além dos limites, o autor
chama a atenção para o poder imaginativo do ser humano de trabalhar o real,
destacando: “De fato os romances mentem, mas esta é apenas uma parte da
história. A outra é que, através da mentira, eles exprimem uma curiosa verdade
que só pode ser expressa de um modo velado e escondido, disfarçando-se do que
não é. (...) comecei com experiências ainda vividas em minha memória e
estimulantes para a minha imaginação (...)”. Esta percepção do poder da
imaginação é um tema essencialmente bachelardiano e, segundo o meu ponto de
vista, deve ser assim encarado. Bachelard vai propor a fenomenologia da
imaginação, conjugada com uma fenomenologia da imagem poética, destacando “a
imagem vem antes do pensamento” (No sentido de uma arqueologia das imagens).
Tomando a casa como exemplo, Bachelard mostra como a imaginação é capaz de
sobrepujar as percepções do real: “Ao seu valor de proteção, que pode ser
positivo, ligam-se também valores imaginados, e que logo se tornam dominantes.”
(Página 19)
Outro aspecto bachelardiano que deve aqui ser
associado ao texto de Vargas-Llosa é a questão da “Função do Real”, relacionada
com a “Função do Irreal”: “Com sua atividade viva, a imaginação desprende-nos
ao mesmo tempo do passado e da realidade. Abre-se para o futuro. A função do
real, orientada pelo passado tal como mostra a psicologia clássica, é preciso
acrescentar uma Função do irreal igualmente positiva, como procuramos
estabelecer em obras anteriores. Uma enfermidade por parte da função do irreal
entrava o psiquismo produtor. Como prever sem imaginar ?” (Página 18)
Várias passagens do texto de Vargas-Llosa
ressaltam esta temática da imaginação:
“No âmago de toda a obra de ficção arde um
protesto. Seus autores os criaram, já que somos incapazes de vivê-los, e seus leitores
(e crentes) encontram nestas criaturas fantasmagóricas os rostos e aventuras
necessárias para realçar as suas próprias vidas. (...)
As mentiras nos romances não são gratuitas –
elas complementam as insuficiências da vida. Assim, quando a vida parece cheia
e absoluta e os homens, por obra de fé absoluta, estão resignados com seus
destinos, os romances não prestam nenhum serviço (...)
Ficção é um substituo temporário para a vida. A
volta a realidade é quase um brutal empobrecimento, corroboração de que somos
menos do que sonhamos (...)
Emergir de seu próprio Eu, ser outro, mesmo na
ilusão, é uma maneira de ser menos escravo e de experimentar os riscos da
liberdade.”
A descontinuidade do tempo é uma outra “grande
sacada” de Vargas-Llosa (que também está relacionada com as concepções
trabalhadas por Bachelard em “A Dialética da Duração): “Embora haja uma
distância entre palavras e acontecimentos, há sempre um abismo entre tempo real
e tempo de ficção. O tempo novelístico é um artifício criado para atingir
certos efeitos psicológicos.”
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