quinta-feira, 21 de julho de 2016

Flanelas 2





Prezados Amigos Leitores

Mais uma linda noite de (ainda) inverno, quando me preparo para realizar uma viagem, gostaria de convidá-los à acompanhar mais uma aventura antropológica de jacquesja.
Penso que a palavra aventura é muito apropriada, pois ir a campo, entrevistar “informantes”, entrar em novas “aldeias” é sempre uma atividade interessante. Nunca sabemos o que vamos encontrar e, quando voltamos, não somos mais os mesmos (quando da partida). A antropologia é uma ciência muito instigante.

Havia informado que publicaria somente textos autorais, mas é necessário trabalhar com algumas transcrições, pois a ignorância é muito grande sobre alguns temas como “Cidades Intraterrenas” (Lemúria e congêneres). Fique atento. Desligue a televisão e embarque na emoção de ler jacquesja. Mais um pouco do trabalho denominado:

ESTUDO  ANTROPOLÓGICO  SOBRE  A  CONSTRUÇÃO  DAS  INDIVIDUALIDADES,  TRAJETÓRIAS  E  ITINERANÇAS  DE  UM  GRUPO  DE    “FLANELAS”   DA  CIDADE  DE  PORTO  ALEGRE   -




ORGANIZAÇÃO  DO  ESPAÇO  URBANO:  Uma reflexão sobre o desenvolvimento da cidade de Porto Alegre, através da análise do traçado das suas ruas e a relação desta organização com o trabalho dos “flanelas”.


A cidade de Porto Alegre está no rol das grandes metrópoles brasileiras, a exemplo de São Paulo, Belo Horizonte e Recife. Em conseqüência disto, aqui se observa os principais problemas urbanos, sociais e econômicos que estão presentes em outras metrópoles como, por exemplo, o desemprego, a poluição, a violência urbana, o caos no trânsito e o crescimento desordenado de vilas populares. Entretanto, em Porto Alegre acontece um fenômeno, no mínimo, interessante, pois no mesmo momento que alguns índices estatísticos apontam para uma cidade com problemas nitidamente de estágio subdesenvolvido, observamos outros índices que reafirmam a tendência do senso comum de perceber a cidade como a “Europa Brasileira” [1]. Só para citarmos alguns números indicativos do “bom” nível das condições de vida da população porto-alegrense, destacamos que pesquisas realizadas recentemente apontam para um crescimento econômico de 13,46 % observado no ano de 1996. O PIB per capita no mesmo período foi de US$ 6.035,56. O salário médio dos chefes de família ficou em US$ 809,12 (ano base 1996). O número total de veículos  (ano base 1994)  observado  foi de 613.621, tínhamos portanto 3,39 habitantes por veículo [2].   Dentre estes dados, destacaríamos dois, o número de habitantes por veículo e a renda média dos chefes de família. Se atualizarmos estes números, através de inferência estatística, teremos atualmente um salário médio do chefe da família em torno dos R$ 1.000,00 (renda considerada suficiente para a aquisição de um automóvel novo, segundo posicionamento dos revendedores de automóveis no Brasil) e um total de, aproximadamente, 816.729 automóveis na cidade, o que significa dizer que estamos próximos do número de dois habitantes por veículos automotores. Se somarmos a estas estimativas os esforços do governo gaúcho para trazer grandes mondadoras de automóveis para a Região Metropolitana de Porto Alegre, bem como as condições econômicas brasileiras de estabilidade da moeda e facilidade de financiamentos para a aquisição de bens duráveis como os automóveis, surge uma preocupação muito presente no imaginário dos  porto-alegrenses hoje: Como será o trânsito de Porto Alegre dentro de 2 ou 3 anos ?  Quais serão as condições de trafegabilidade para pedestres e para usuários de veículos na cidade ? Como e a que custo estará organizado o espaço urbano, a fim de comportar o crescimento esperado para os próximos anos ? [3]  Mais do que respostas, nos interessa colocar estas questões para afirmarmos uma opção de estruturação deste trabalho que, estudando os guardadores de carros (ou flanelas), pretende tentar perceber um pouco da dinâmica desta cidade e do seu desenvolvimento. Pois entendemos que situar a cidade neste contexto nacional de grandes metrópoles, destacando algumas de suas características, como aqui fizemos, significa dizer que reconhecemos este mapeamento como necessário ao se trabalhar com um ator social tão urbano e tão contemporâneo quanto o “flanela”. Entendemos ainda que o “flanela” surge na esteira de um Brasil que encontrou no desenvolvimento da indústria automobilística uma maneira de incrementar e fomentar a sua economia nacional.   
Desde já, percebemos que o “flanela” passa a atuar socialmente, a partir do momento em que a urbanidade e a dinâmica da cidade o permite e o solicita atuar. Historicamente, poderíamos dizer que isso só passa a ser possível de acontecer na cidade de Porto Alegre a partir do início deste século, quando chegam aqui os primeiros automóveis. Em uma referência mais exata, podemos afirmar que foi o ano de 1906 o marco referencial para a existência do guardador de carros na cidade, pois é nesse ano que aqui chegam e começam a circular os primeiros automóveis. Contudo, a produção de automóveis em escala industrial, bem como o incremento nas vendas dos veículos, dado através de subsídios do poder público, é acelerado especialmente a partir da década de 70, ou seja, no período que conhecemos como “milagre econômico brasileiro”. É a partir de então que as cidades brasileiras são tomadas pelos veículos automotores e os espaços urbanos começam a ser pensados e organizados para uma nova dinâmica citadina, a dinâmica da velocidade, da alta mobilidade, do poder mecânico de locomoção, enfim a dinâmica dos automóveis. Surge, então, a necessidade de se abrir novas avenidas e ruas, redimensionar e alargar as já existentes, de se construir  elevadas, viadutos e túneis em função desta nova dinâmica urbana [4].
Como vimos, pensar o “flanela” como um ator social urbano contemporâneo é pensar a cidade urbana contemporânea em que ele atua, se insere e se articula. Ao passo que pensar esta cidade é mapear as suas prioridades e características, como ela se organiza e se estrutura socialmente, economicamente e especialmente. Portanto, propomos uma incursão na cronologia histórica da cidade de Porto Alegre, reportando um tempo bastante longínquo, o ano de 1772.
Escolhemos dar inicio a esta “viagem” histórica pelo ano de 1772 pelo fato de ser desta época o primeiro traçado das ruas de Porto Alegre. Era uma época de lutas pela posse e delimitação de terras e propriedade onde tínhamos no Porto de São Francisco dos Casais (nome dado a cidade na época) apenas três ruas. A Rua da Praia, que seria a primeira aberta dentre as três, paralela a ela tínhamos a Rua do Cotovelo (atual Riachuelo) e a Rua Formosa (atual Duque de Caxias) . Temos então ai já definido o local do atual coração de Porto Alegre, com as suas ruas mais tradicionais. (Ver anexo 01)
Avançando um pouco no tempo, chegamos ao ano de 1803, marcado por movimentos que visavam transformar a Freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre em vila. Considerando apenas as ruas que possuíam edificações, teríamos 7 ruas. Tínhamos  a Rua da Praia, a Rua da Ponte (Atual Riachuelo), Rua Formosa (Atual Duque de Caxias), Rua de Bragança (Atual Marechal Floriano), Rua do Ouvidor (Atual General Câmara), Rua Clara (Atual João Manoel) e a Rua do Arroio (Atual Bento Martins) que na época era chamada ironicamente de rua dos pecados mortais ou rua das virtudes. Além destas ruas, tínhamos inúmeros becos e caminhos onde não haviam edificações. (Anexo 02)
Em seus primeiros anos como cidade, Porto Alegre consolidou a urbanização do núcleo inicial e começou a traçar as “varetas do leque” (Franco, 1975) que apontaria os rumos do crescimento definitivo. Teríamos ao norte o Caminho Novo que seguia a margem do Delta do Jacuí e começaria a se interligar com o arranchamento dos inimigos alemães no futuro bairro Navegantes. Margeando a Várzea (Campo da Redenção), havia duas estradas. O Caminho do Meio (Atual Osvaldo Aranha) que dava acesso a Viamão e a Estrada da Azenha (Atual João Pessoa) se bifurcava depois da ponte: pela esquerda se chegava a Viamão, pela direita seguia-se para as estancias de Belém Velho e Itapu. Pela margem do Guaíba, cruzando a ponte de madeira sobre o Riacho, estava o Caminho de Belas, que recebeu esse nome provavelmente em referencia à figura e à propriedade de Antônio Rodrigues Belas que atuou Por muitos anos como encarregado da aferição de pesos e medidas. A cidade viria a se expandir tendo como linhas mestras esses caminhos. Nesta época, não havia planos de arruamento fora da zona urbana, onde só havia chácaras. Mas aos poucos começavam a se formar núcleos de casas junto a capelas, olarias ou moinhos. (Ver anexo 03)
Depois da Guerra dos Farrapos, a expansão da área urbana de Porto Alegre, já determinada pela geografia, segui os velhos caminhos do tempo dos desbravadores. Para o sul, o Caminho de Belas, para o norte, o Caminho Novo e ao centro, margeando a Várzea (atual Parque Farroupilha), o Caminho do Meio (Atual Osvaldo Aranha) e a Estrada da Azenha (Atual João Pessoa). Por fim, sobre a lombada que se estende desde a ponta da península, a Estrada dos Moinhos (Atual Independência). (Ver anexo 3A)
Em 1914 o arquiteto João Maiel elaborou o Plano de Melhoramentos da Capital, no qual estabelecia o marco das transformações pelas quais a cidade desembocaria em um novo tempo de modernidade. Seu plano antevia a Redenção como grande área de lazer integrada ao centro, a criação de um teatro municipal, armazéns no Porto e a nova Alfândega, a retificação do Arroio Dilúvio como forma de sanear a parte baixa da cidade e até a avenida Beira Rio. Maciel demonstrou bastante perspicácia e arrojo  em seus projetos, porém como estavam sendo pensados em 1914 algumas de suas obras só foram implantadas na década de 80. (Ver anexo 04)
O primeiro Plano Diretor da cidade data de 1959, tinha como principais objetivos controlar o crescimento desordenado da cidade e impedir a sua desfiguração. A partir de então, Porto Alegre já começa a ter o seu traçado muito semelhante ao que conhecemos atualmente (Ver anexo 05). Neste final de século, a cidade se prepara para receber o seu 3o. Plano Diretor para com ele adentrar e enfrentar os desafios do século XXI. Este plano altera o histórico traçado viário de radiais e perimetrais e triplica o número de eixos, num desenho xadrez destinado a facilitar as ligações entre bairros. Contém um capítulo especial sobre “habitação de interesse social”, prevê a regularização de loteamentos irregulares e clandestinos, que hoje compõe aproximadmente 30 % da cidade. É o que os técnicos chamam de cidade “real”, a ser progressivamente incorporada pela cidade “formal”. Maiores detalhes desta proposta para a urbanização e organização da cidade de Porto Alegre pode ser acompanhada na iconografia anexa a este trabalho. (Ver anexo 06) 
  Realizada esta “viagem histórica” pelas ruas e traçados de Porto Alegre, nos interessa destacar qual a relação de todas estas informações como o estudo que desenvolvemos sobre os “flanelas”. Enfatizaremos, basicamente 3 aspectos: I - No quadrilátero analisado neste trabalho, percebemos que a Rua Osvaldo Aranha (Antigo Caminho do Meio) e o Parque da Redenção (Antiga Várzea) são, respectivamente, uma das  ruas e um dos locais mais antigos e de maior tradição na história da cidade, pois a sua existência e o seu traçado remontam o século passado;  II - A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição que permeia e é permeada pelo trabalho dos “flanelas” estudados, tem a sua história contada a partir do começo do século (1908-1909), quando passa a funcionar a Faculdade de Direito na Avenida João Pessoa. Portanto, também é uma das instituições de ensino mais antigas e mais tradicionais no cenário da educação na cidade de Porto Alegre;  III - É no início deste século (1910 - 1920) que a região da cidade onde realizamos o nosso trabalho passa a ter uma dinâmica e um desenvolvimento mais acelerado. Isto acontece especialmente pelo aumento da população da cidade, pela chegada do automóvel e pelo funcionamento das instituições de saúde e ensino [5] que passam a desenvolver as suas atividades neste local, movimentando um grande número de pessoas e redefinindo a organização deste espaço urbano. (Ver anexo 07)   







[1] Expressão utilizada para referir as semelhanças entre os níveis de qualidade de vida observadas em Porto Alegre, quando comparados com alguns países da Europa. O Nosso clima colabora para este entendimento.
[2] Dados do anuário estatístico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
[3] Estas questões surgiram nas entrevistas realizadas com os “usuários” dos estacionamentos pesquisados, quando perguntados sobre a questão do futuro de suas vidas na cidade e na organização do espaço urbano em um futuro próximo.
[4] É no período de 1970 a 1982 que acontecem a construção dos principais viadutos, elevadas e túneis que conhecemos hoje em Porto Alegre. Em 24 de junho de 1970 é inaugurado o Viaduto Loureiro da Silva sobre a Avenida Salgado Filho. Em 24 de abril de 1972 é inaugurado o Viaduto D. Pedro I, sobre a 2a. Perimetral. Em 7 de agosto de 1972 é inaugurado o túnel e a elevada da Conceição.. Em 30 de outubro de 1972 é inaugurado o Viaduto Tiradentes, sobre a Rua Silva Só. Em 31 de julho de 1973 é inaugurado o Viaduto dos Açorianos sobre a 1a. Perimetral. Em 1975 é inaugurado o Viaduto Obirici sobre a Avenida Plinio Brasil Milano. Em 27 de julho de 1982 é inaugurado o Viaduto Ildo Meneghetti, sobre a Rua Vasco da Gama.
[5] Neste perímetro, já nesta época, temos a Santa Casa de Misericórdia, a Beneficência Portuguesa, a Escola Complementar, o Colégio Militar, a Escola de Medicina, o Observatório Astronômico, o Observatório Meteorológico, o Instituto Eletrotécnico, o Instituto Técnico Profissional, a Escola de Engenharia e a Escola de Direito funcionando no local.

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