quinta-feira, 16 de abril de 2015

A Cidade de Porto Alegre


Nome do Autor: JACQUES JACOMINI


OS  PRIMÓRDIOS  DE  UMA  CIVILIZAÇÃO  NOTADAMENTE  MARCADA  PELA  FLUVIALIDADE  LOCAL.


A
relacao dos habitantes de Porto Alegre com o Rio Guaíba remonta um período histórico que antecede a configuração de uma cidade propriamente dita. Alguns historiadores, arqueólogos e antropólogos propõe pensar a região sobre a qual viria se formar a cidade de Porto Alegre desde o ano 3.000 a C. para falar dos “habitantes da região do Grande Lago.” Neste período é marcante a presença dos Povos Guaranis que com a sua cultura e a sua busca incessante da “terra sem males” deixam gravadas aqui as suas tradições as quais penetrariam na constituição da cidade de Porto Alegre, bem como na relação dos seus habitantes com o “grande lago”. São lendas, mitos e crenças, além de toda uma cosmovisão transmitidas por um arsenal histórico e cultural que simbolicamente falam o tempo todo para as novas gerações de porto-alegrenses.
Neste trabalho, propomos analisar um pouco desta relação dos habitantes da cidade com o seu rio (ou lago) [1], tentando perceber como ela acontece em determinados períodos históricos. Realizamos assim uma incursão pela espacialidade de alguns perímetros citadinos, quando, por exemplo, pensamos na lógica que determina a construção de um muro que vai dividir dois espaços urbanos: Caís do Porto e perímetro urbano ou espaço intra-muros e espaço extra-muros. Assim procedemos, pois acreditamos que “el interés del hombre pur el espacio tiene raíces existenciales: deriva de una necessidad de adquirir relaciones vitales en el ambiente que le rodea para aportar sentido y ordem a um mundo de acontecimentos y acciones.” (Norberg-Schulz, 1975)
Dentro da análise que aqui propomos, destacaremos qual a relação das construções subjetivas e simbólicas dos porto-alegrenses com as construções institucionais-legais acerca da necessidade (ou não) de um dispositivo de delimitação (ou proteção) cidade X rio. Trata-se da tentativa de mapear os contornos de uma Porto Alegre antiga, que guarda as lembranças de grandes enchentes, como a de 1941,  justificando a existência de um muro de proteção em contraste com uma Porto Alegre moderna que incorpora ao seu imaginário as “feições de crise e de medo” (Eckert, 1997) , oriundas de uma dinâmica citadina urbana contemporânea.











OS PRIMEIROS  PILARES  DE  UMA  CIDADE  NOTADAMENTE  FLUVIAL:  CONTEXTO  E  ASPECTOS  DA  CONSTITUIÇÃO  DA  PORTO  ALEGRE  ANTIGA (1752 - 1911)

“(...) O Porto, em que acreditávamos tanto, terminou em frustração, com o projeto de transformar-se em área de lazer. Os barcos e os tens nos abandonaram, dando lugar aos caminhões. A indústria fabril, depois de um ciclo de prosperidade, migrou para outras paragens. O capital internacional não acha muitos atrativos numa área de caminhos estrangulados e de comunicações roucas.”  (Franco, 1997)


A
chegada dos casais açorianos em 1752 marca o início da                 colonização do então Porto de Viamão (nome dado a um ancoradouro nos fundos da Sesmaria de Jerônimo de Ornellas, onde está agora a Praça da Alfândega). Instalados em casas de palha no local onde encontramos hoje a atual Praça da Alfândega, os casais vindos das Ilhas dos Açores inauguravam o que viria a ser “um arraial bastante fértil”. [2]
Neste período, a relação dos primeiros habitantes com o Rio Guaíba é bastante intensa especialmente por duas razões. Em primeiro lugar, pelo fato de terem chegado até aqui navegando pelas suas águas, portanto em um primeiro contato bastante emocional com o rio. Em segundo lugar, em razão de terem as suas primeiras sociabilidades definidas por um contato diário e intimo com o rio, pois as suas primeiras casas foram construídas nas suas margens. Neste local, passam a se desenvolver atividades econômicas voltadas para a dinâmica fluvial do Rio Guaíba como a construção de barcos e a comercialização de bens de consumo. A instalação da Alfândega em 1804 e a abertura dos portos em 1808 veio a incrementar estas atividades comerciais e a transformar Porto Alegre em um importante centro comercial. O crescimento do vilarejo, impulsionado pelas atividades econômicas locais, traz a necessidade de se ampliar o perímetro que circundava o centro comercial de Porto Alegre. Isto acontece pela primeira vez em 1850, quando o aterro proporciona a abertura de mais uma rua no centro comercial da cidade, atual rua Sete de Setembro. Este avanço sobre as águas só vai terminar em 1978, quando um outro grande aterro propicia a construção de dois grandes parques na cidade, Parque Marinha do Brasil e o Parque Maurício Sirotski Sobrinho.
Com o crescimento da cidade vieram os primeiros problemas ambientais observados já em 1866. Nesta época foi proibida a coleta de água no canal do Guaíba que começava a ter as suas margens poluídas pelos excrementos da população depositados diariamente pelos “cubeiros”[3] e por outros dejetos produzidos a partir das inúmeras atividades ribeirinhas. Juntamente com estes problemas ambientais, surgem as primeiras ocorrências de doenças contagiosas e pestes, como a epidemia de cólera que se abateu sobre a cidade entre 1875 e 1876. Assim passam a ser pensadas alternativas que colaborassem para o saneamento e a melhoria das condições de higiene do rio e das suas ribeiras.
Em 1911 surge uma alternativa entendida na época como uma proposta ideal para estas necessidades de melhoramento e saneamento do local, a construção do Caís do Porto. Assim, no mesmo ano, começa a ser construído o atual Caís do Porto de Porto Alegre que tinha dois objetivos em especial: Unificar a porta de entrada da cidade, melhorando o aspecto para quem aportava em Porto Alegre  e  higienizar / normalizar [4] as atividades econômicas locais, uma vez que nesta época, por volta de 1900, existiam mais de 30 trapiches na área central da cidade, onde eram desenvolvidas inúmeras atividades comerciais    Ao ser concluído, o novo porto, além de melhorar o escoamento da produção industrial crescente, enfim podia ser considerado como uma nova e ampliada porta de entrada da cidade que se construía e se pretendia grande e desenvolvida.
Em  1914, durante a implantação do Plano de Melhoramentos da Capital, elaborado pelo arquiteto João Maciel, Otávio Rocha dá mais uma passo decisivo em direção a esta preocupação da higienização da cidade criando um órgão público com este objetivo específico, a Diretoria de Higiene [5].
Na década de 20 a cidade havia crescido bastante, incrementado suas atividades industriais e comerciais, e o seu crescimento trazia mais um desafio a ser encarado pelos porto-alegrenses: aumentar a produção de energia elétrica que era insuficiente para atender a demanda crescente da cidade. Neste momento, mais uma vez o Rio Guaíba viria a fornecer e possibilitar as condições necessárias ao enfrentamento deste problema. Cederia as suas águas para duas atividades essenciais ao funcionamento da Usina Termelétrica do Gasômetro:  por elas embarcações trariam o carvão a ser ali processado e, ao mesmo tempo, as suas águas eram usadas para refrigerar os condensadores da usina, atividade que exigia uma grande quantidade de água.
A relação do porto-alegrense, especialmente o morador do centro da cidade, com o Caís do Porto e com o Rio Guaíba viria a se transformar bastante a partir de 1971. A intima relação e a extensa interação dos moradores da cidade com o “Grande Lago”, observados desde os seus primórdios, passa a ser cerceada pela construção de um extenso muro de concreto na Avenida Mauá [6]. Concluído em 1974, gestão do prefeito Telmo Thompson Flores, o muro abre uma série de questionamentos e debates a cerca da sua funcionalidade e necessidade travados entre os porto-alegrenses desde então. O principal questionamento que está colocado no imaginário dos moradores mais antigos passa pelas lembranças e pela percepção de uma cidade antiga voltada para o seu rio e uma cidade moderna que renegou o seu passado fluvial e assumiu uma dinâmica citadina moderna, delineada pela velocidade dos automóveis.
 Os depoimentos de alguns moradores remontam lembranças dos estragos provocados pela enchente de 1941 [7], mas não a transformam estas lembranças em uma razão lógica para a existência do muro que viria, supostamente, proteger a cidade de outras inundações semelhantes a ocorrida em 1941.
Na tentativa de ultrapassar um pouco a narrativa estritamente histórica e documental e perceber outros aspectos que estes documentos não nos possibilitam acessar, passaremos a descrever uma etnografia de rua que realizamos no Caís do Porto. Caminhando, etnografando e explorando os atuais atores sociais do atual Caís do Porto, levantamos alguns dados ainda inéditos neste esforço de mapear a relação do porto-alegrense com o seu rio, segundo a evolução e desenvolvimento de uma cidade notadamente marcada por uma dinâmica fluvial.

    







UM  OLHAR  ETNOGRÁFICO  SOBRE  A  ATUAL  DINÂMICA VIVENCIADA  NO CAÍS  DO  PORTO  DA  CIDADE  DE  PORTO  ALEGRE: Caminhando pelo o que restou de um período de pujança e desenvolvimento de uma cidade outrora voltada para o seu rio.


A
 minha observação inicio a partir do momento que me aproximo do Largo Glênio Peres e arredores do Mercado Público de Porto Alegre. Ao passar pelo largo, observo muitas pessoas que circulam pelo local com toda a “pressa” originária de um grande centro urbano. Apesar da “pressa” (ou aparente falta de tempo), algumas pessoas param e ficam observando os “artistas” que atuam naquele local. Destacaria o tradicional vendedor de remédios naturais que, com recursos diversos (aparelho de som, animais exóticos como cobras, apelo teatral e dramático), tenta vender os seus produtos no Largo e nas praças da cidade, sendo assim já bastante conhecido da população; e um músico que tocava violino, utilizando alguns recursos sonoros como caixas de som e amplificadores, chamando bastante a atenção das pessoas que por ali passavam. Pude observar o Mercado Público que, totalmente restaurado, estava enfeitado com painéis e desenhos alusivos a Primeira Bienal do Mercosul, evento cultural que tem mobilizado muitas pessoas na capital. Vencido o Largo, nos aproximamos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, passo a me encomodar um pouco com o grande fluxo de pessoas e procuro então me afastar das ruas mais centrais, andando em direção a Avenida Mauá, onde se encontra o Caís do Porto, ponto que escolhemos para iniciar a nossa etnografia de rua. A tentativa de evitar o grande fluxo de pessoas, afastando-me das ruas centrais, e caminhando pela Av. Mauá não foi muito promissora, pois também ali o tráfego estava complicado, principalmente em função de alguns caminhões que descarregavam cargas nas proximidades do Prédio dos Correios e Telégrafos prejudicando assim o trânsito de pedestres naquele local. Passo a mapear os principais vizinhos do Caís do Porto, dentre eles os Correios e Telégrafos, Secretaria da Fazenda, Delegacia Regional do Trabalho, terminais de ônibus coletivos urbanos de Porto Alegre e grande Porto Alegre (Viamão) e o Instituto Santa Marta (SUS).
A travessia da Av. Mauá (em direção ao Cais do Porto) é, sem nenhuma dúvida, “uma manobra bastante arriscada”. Neste local o trânsito de veículos é muito grande e a velocidade média dos automóveis, caminhões e coletivos também é alta em função da avenida ser extensa (uma grande reta),  larga (com 3 faixas de rolagem) e não existir nenhum dispositivo inibidor da velocidade (com exceção do semáforo). Existe uma faixa de segurança e uma semáforo quase em frente a entrada principal do Caís do Porto, o que, teoricamente, facilitaria a travessia dos pedestres, no entanto nem sempre é bem assim. Os motoristas costumam aproveitar ao máximo o tempo destinado para a sua travessia, transitando no momento em que o sinal fica no amarelo e até nos primeiros instantes em que o sinal aponta a cor vermelha, ou seja, propõe a sua parada e permite a passagem para o pedestre.  Portanto, o fato de o sinal estar apontando a travessia para o pedestre (vermelho para os motoristas) não representa uma situação de travessia segura para este. Uma outra situação que representa bastante risco para o transeunte que decide atravessar a Avenida é aquela em que o sinal muda quando o pedestre encontra-se no meio ou quase no final da travessia da Avenida. Neste caso, a pessoa precisa correr ou pular a fim de que não sege apanhada por um veículo, pois observei que os motoristas decidem aproveitar ao máximo todos os segundos destinados a sua travessia, não abrindo mão assim dos primeiros instantes da exposição do sinal verde, mesmo que o pedestre ainda se encontre no meio da sua travessia. Em resumo, atravessar uma avenida no centro da cidade não é uma tarefa muito fácil e nem muito tranqüila, pois exige do pedestre bastante atenção e perspicácia para perceber o momento exato que a travessia pode ser realizada sem nenhum risco para a sua segurança pessoal. Esta situação pode ser bem mais problemática para os idosos, crianças, gestantes e deficientes físicos por razões óbvias.
Vencida a travessia da Avenida Mauá, entro no portão principal do Caís do Porto. Entrando, a minha esquerda, encontro o posto da guarda portuária, onde um cidadão faz a segurança no local. Decidi solicitar informações sobre como deveria proceder para realizar a visitação naquele local. Fui informado que deveria me dirigir ao prédio da administração do Porto, onde deveria solicitar uma autorização (por escrito) para realizar a visita. Assim procedi, subindo ao quarto andar do prédio apontado pelo guarda, onde em contanto com a funcionária Dulce consegui a permissão, após ter me identificado e externado o objetivo da minha visita naquele local. De posse da autorização, me dirigi ao portão de acesso do Caís, apresentei a autorização para um outro guarda que a reteu, permitindo a minha entrada e informando que eu poderia visitar todo o Caís em sua parte em que estava a minha direita, e a parte que ficava a minha esquerda não poderia ser acessada por ser “área operacional”, palavras dos funcionários para referir a parte onde existe intensa atividade de carregadores, guindastes, carga e descarga de containers, etc.
Neste momento, já na beira do Rio,  acontece o meu primeiro contato com algo que me acompanharia, ou até me indicaria uma determinada trajetória nesta visita ao Cais do Porto do Rio Guaíba, os trilhos utilizados para a locomoção de algumas  máquinas e/ou guindastes que não saberia precisar em detalhes neste momento. Observo que estes trilhos estão sendo usados pelos guindastes que estão a minha esquerda (lado Operacional). Na minha direita os trilhos continuam existindo, mas parecem não estar sendo usados para o deslocamento dos guindastes observados a minha esquerda , fato que me leva a supor uma provável restruturação físico-espacial deste local, pois a existência dos trilhos no meu lado direito supõe a existência destes mesmos guindastes operando em um outro momento (outra época e organização deste espaço) anterior a este.    
A minha direita, tenho o Barco Cisne Branco ancorado com alguns homens no seu interior, parece que trabalham e organizam algumas coisas no barco. Observando o barco estão um grupo de alunos de uma escola que realizam uma visita ao Caís. Fotografam e são fotografados, conversam com os seus professores sobre o barco, sobre o rio, ... parecem estar gostando bastante do passeio, pois aparentam muita satisfação, descontração e interesse por tudo o que vêem ao seu redor. De fato, penso que nem poderia ser diferente, entre outros motivos, por estarmos vivendo um dia muito ensolarado, com temperaturas altas, céu claro e uma brisa gostosa a sombra.
O Barco Cisne Branco traz um sistema do som que ligado, espalha pelo ambiente músicas veiculadas por uma rádio local da cidade de Porto Alegre. Esta sonoridade traz, segundo o meu entendimento, consigo uma sensação de descontração para as pessoas que visitam o local.
Olhando para o interior do rio, vejo a primeira embarcação que circula pelo local, ela traz uma carga de areia e se desloca lentamente pelas águas calmas do Rio Guaiba. Na mesma direção podemos observar o topo de prédio que se encontra na Ilha do Presídio, ponto próximo ao Cais.
Ainda a minha esquerda, após passar pelo barco Cisne Branco, encontro trabalhadores que descarregam determinada carga de uma carreta estacionada neste local.
Vou caminhando a fim de explorar a região que me foi permitida o acesso, ou seja, lado direito de quem entra no portão principal do Caís do Porto. Após passar pelo primeiro armazém B1 (no seu interior estão grande rolos de papel, e pequenos pacotes também de papel), onde trabalhadores trabalhavam na descarga de determinado produto, me encontro nos fundos do prédio da administração onde a bem pouco tempo estava solicitando a autorização para realizar esta visitação. Após este prédio, passo por um outro armazém B2 fechado e sem nenhuma movimentação de pessoas.
Estacionado neste local duas grandes carretas com cargas que parecem ser grandes transformadores de energia elétrica. Os caminhões que puxam a carreta são caminhões do tipo “fora de estrada”,  realmente muito grandes e contam com sinalizações especiais que chamam a atenção para o seu excesso de largura e comprimento (diante das dimensões normais utilizadas pelos veículos tradicionais). Ao me aproximar de uma das carretas, vejo que a altura  das rodas chegam próximo ao meu ombro. Como tenho 1,76 m de altura, a altura das rodas chegam a, aproximadamente, 1,40 m, são, portanto bastante expressivas.
Após as carretas, vejo mais três supostos transformadores colocados em linha, os quais suponho estarem esperando para serem carregados. Faixas estão colocadas nestes transformadores estampando o nome da empresa de destino (ou de origem), COENSA.
Olhando a minha esquerda, avisto a Ponte do Rio Guaíba (em direção a cidade de Guaíba) e algumas ilhas do mesmo rio. Na minha frente mais um prédio, onde leio Fundação Nacional de Saúde (Vigilância Sanitária), local onde funciona algum setor deste órgão.
Logo a minha direita existe um portão  que encontra-se aberto e dá acesso ao Caís do Porto. Ao contrário do portão principal, neste não existem guardas nem outro tipo de segurança que dificultem o acesso. Passo pelo portão e começo a percorrer a rua que é paralela ao rio, no interior do muro da Mauá, ou seja, entre o muro e o rio.
Percorrendo esta rua chego ao primeiro (de uma série) ancoradouro na seqüência de quem vem do portão principal do Caís do Porto em direção a cidade de Canoas. O primeiro é um ancoradouro onde encontramos apenas alguns barcos de pequeno porte. Neste local existe uma placa onde leio: “Grêmio Náutico União, Estação Fluvial Nilton Silveira Neto, Embarque, Sede Ilha do Pavão”. Nas proximidades do prédio do Palácio do Comércio, me deparo coma estação dos bombeiros. Na parede está estampada os símbolos e uma mensagem (ou lema) do 3o. grupo de bombeiros da brigada militar : “Homem do salvamento, estar seguro, trabalhar com segurança, produzir segurança, mais do que um lema, uma filosofia em ação.”
Passo a perceber que, em verdade, o Caís do Porto possui toda uma cultura muita própria e muito sua. Cada ancoradouro, cada espaço ou cada ator social que aqui atua está inserido numa lógica e numa racionalidade que para ser percebida em sua integralidade demandaria uma investigação muito mais minuciosa e elaborada do que por ora realizo. É um pouco óbvio o que estou afirmando, no entanto é interessante de registrar esta minha percepção de que somente um envolvimento e uma interação maior com este local me permitiria perceber e reconstruir a “subjetividade portuária”, fato que nos revelaria  em detalhes a verdadeira dinâmica, a real estruturação, organização e normalização deste “espaço não - urbano” da cidade de Porto Alegre.
Voltando a descrição físico-espacial do lugar, me aproximo do prédio C3, onde leio garagem e oficina APPA - Portão 01.  Atento para a cobertura da rua que estou percorrendo que é de pedras do tipo paralelepípedo. Caminho no sentido centro bairro (no caso Centro de Porto Alegre - Canoas) e a minha direita tenho um trilho (o mesmo que começou o seu traçado logo na entrada do Caís) que percorre toda a rua, decido seguir a sua trajetória, pois percebo que ,apesar de estar atualmente em desuso, este trilho já representou uma determinada dinâmica de trabalho do Caís do Porto. Seguí-lo, ou percorrê-lo é atitude óbvia para quem tenta perceber o que este trilho e o que este chão podem estar querendo “falar” para quem o “escuta” (ou quem com ele dialoga). Avisto o prédio C4 que tem as portas abertas e máquinas no seu interior, no entanto não existe movimento de trabalhadores neste momento (viria a saber, mais tarde que o que estava aqui acondicionado era sal). Uma placa estampa a mensagem “Proibida a entrada” ao lado deste prédio (na verdade estas placas foram encontradas em vários locais do Caís, denotando as estratégias de contenção e normalização deste espaço, porém nem sempre elas pareceram atuais e operantes). Percorrendo mais um trecho da rua chegou a um outro ancoradouro (02) onde estão atracados navios de grande porte, Navio Taquari, Itapuã, ...  Fiquei tão impressionado com o tamanho das embarcações que passei a tentar quantificar o seu tamanho: eles teriam, aproximadamente, uns 10 metros de largura e uns 30 de comprimento. Neste mesmo ancoradouro, observo várias outras embarcações de menor porte que as três anteriores, apresentando um péssimo estado de conservação o que permite suprimir até que elas estão totalmente fora de atividade.
Continuo caminhando, em certo momento o capim esconde os trilhos e passo a pensar se estou seguindo a trajetória dos trilhos ou são os trilhos que acompanham a minha caminhada ? A resposta não é minha neste momento. Avisto um outro prédio que está mal conservado e tem escrito em suas paredes anúncios de venda de gelo.
Me aproximando da Elevada da Conceição, olho para o muro que separa a cidade do Rio e percebo a “força” deste muro. É realmente um aparelho delimitador espacial que remonta a perspectiva da percepção “intra-muros” e “extra-muro” como a que já trabalhei em casos de realidades institucionais do estilo manicomial. Em outras palavras, a cidade está excluída deste espaço e vice-versa, o que nos coloca claramente a necessidade de se separar o que é urbano do “não - urbano”, ou a lógica urbana da lógica “não - urbana”. Este é um ponto (espacialidade do Caís) de análise deste local e desta lógica local que demandaria também um esforço maior de análise e de interação, como já havia afirmado antes. Nas proximidades da Elevada da Conceição observo uma espécie de portão (na extensão do muro) que parece não ser utilizado visto a suas características de conservação e dos capins que o entornam.
Caminhando mais um pouco avisto um outro prédio onde leio: Centro Integrado de Comercialização agrícola e, novamente, Venda de Gelo. Este prédio está desocupado e desabitado, além de mal conservado como o anterior. Ao lado do muro encontro bastante lixo neste trecho da caminhada, parece que na medida em que nos afastamos do portão principal do Caís do Porto aumenta o desleixo, a sujeira, a má conservação dos prédios, inexistência de atividades nos prédios, etc. Ou seja, na medida em que nos afastamos do “centro” deste local o que era belo, policiado e bem cuidado agora é o oposto de tudo isso.
Chego ao terceiro ancoradouro  e observo alguns barcos de grande porte. Uma das embarcações é parecida com as que carregam areia, não sei exatamente o nome específico. Posso perceber,  então,  mais um bloco de prédios que é o (c6), onde observo algumas caixas garrafas de bebidas sendo transportadas. O  prédio ao lado esta aparentemente sem atividade, não tem pessoas que circulam ou que estão trabalhando neste local. Alguns carros passam por mim e suponho que são funcionário que, nesse momento são 11:25,  estão talvez indo para de almoço. Me encontrava agora nas proximidades da rodoviária e da elevada da Conceição. Passo a ter  a impressão que esta estrada vai mais longe do que eu imaginei, portanto seria necessário ter uma condução para explorá-la em toda a sua extensão.
Tenho a minha direita o terminal do trensurb pessoas onde aguardam a chegada do trem. Me parece que este seria o terminal Estação Rodoviária. Vejo dois caminhões  velhos  estacionados ao lado do referido prédio. O Trensurb acaba de chegar no terminal e as pessoas que o aguardavam passam a trafegar nele. Neste momento, passo por cima dos trilhos  que me eu estava acompanhando, (ou dos trilhos que acabaram por definir a minha trajetória, ou trilhos me trouxeram até aqui, ou ...) ou seja eles cruzaram a rua em direção ao rio. Neste momento fico admirado com o que estou vendo:  uma caminhão, do tipo tombadeira, estaciona ao lado do prédio C6 e operários colocam  caixas de garrafas de vidro neste caminhão e ficam quebrando as garrafas.  Parece que garrafas de vidros   realmente não são mais importante, pois estão quebrando e colocando dentro da tombadeira.
Sinto a necessidade curiosidade de adentrar e explorar mais essa estrada que continua a minha frente, porém vou retornar, até porque os trilhos  me trouxeram até aqui. Neste momento acontece algo muito interessante: vejo um senhor sair do prédio onde os operários quebravam as garrafas e decido passar a caminhar ao seu lado conversando com ele (em direção ao portão principal do Caís, ou seja, retornando), a fim de conhecê-lo e, ao mesmo tempo, conseguir algumas informações sobre a dinâmica do Caís que se apresentavam como uma incógnita para mim. O diálogo foi mais ou menos este que passo a transcrever:

Jaques: Bom dia, tudo bem?
Sanislau: Tudo bem
J - O Senhor trabalha aqui?
S - Sim, sou vigia. Há muitos anos.
J - Antes do Trensurb já tinha o muro ?
S - Estão para derrubar, isso deixa a cidade feia.
J - afastou as pessoas do rio?
J - Claro, vê só, isso ai está tudo parado (aponta para os barcos atracados), não trabalha mais, de dois em dois anos tem que fazer vistoria, pintura nova, trocar a chapa.
J - Como faz para pintar, tem que tirar da água, onde é feito isso ?
S -   no estaleiro Só, na Ilha da Pintada. Se derrubassem esse muro voltava as pessoas a conhecer mais, ... Tem um projeto para ser derrubado
J - Devem ter medo de dar um enchente que possa inundar a cidade ? Em 1941 o senhor estava aqui ?
S - Lá na rua da praia tinha água.
J - Até hoje estão com medo, quanto tempo faz?
(...)
S - Esses bombeiros atende mais é salvamento. Esses barquinhos pequenos são para passeio o para os pescador
(...)
S- São de pescador
J - Esses caminhões recolhem o peixe ?
S -Levam para o mercado
J - Será que da peixe bom, e pode pescar ?
S - pode tem que ter a licença.
J - Aquela ilha que se vê é a ilha do presidio?
S -  era uma deposito de pólvora
J - Foi ali que prenderam os presos políticos em 64?
J - Guardava armamento, e o senhor estava indo para onde ?    
J - E estes trilhos ?
S -  Buscavam as cargas dentro do armazém.

Foi uma conversa muito interessante de, aproximadamente, 20 minutos com um cidadão de aparentemente 60 anos que me deu informações preciosas sobre o Caís do Porto e parte de sua dinâmica. Após a esta caminhada de retorno, encerrei a minha observação.






[1] Segundo denominação geográfica, lago pois une dois grandes volumes de águas navegáveis, o Rio Jacuí e a Lagoa dos Patos. O Jacuí desce em turbulência de sua nascente localizada no Planalto, cerca de 400 metros acima do nível do mar. Ao atingir a Depressão Central, a 100 metros de altitude, suas águas correm para o leste e vão diminuindo a velocidade, de acordo com o suave declive da planície. No trajeto final, próximo a Porto Alegre, o Jacuí recebe as águas do Taquari, do Caí, do Sinos e do Gravatai, formando um delta, uma enorme bacia de decantação onde se acumula a terra arrancada das encostas do Planalto. Essas águas calmas e barrentas são despejadas no Guaíba, apenas cinco metros acima do nível do mar. O Guaiba desemboca na Lagoa dos Patos que lança suas águas no Oceano Atlântico, 250 Km ao sul.
[2] Expressão usada na primeira referencia registrada em documento sobre a povoação que se formava no então Porto de Viamão, a qual se desenvolvia rapidamente para os padrões da época.
[3] Cubeiros - indivíduos que carregavam e limpavam os “Cubos”, recipientes onde eram armazenados os excrementos das residências mais abastadas. Uma vez cheios, eram levados até as margens do rio pelos escravos (e depois pelos funcionários da prefeitura que assumiram este serviço) e ali descarregados e lavados para voltarem a ser utilizados nas residências.
[4] Um relatório da época dizia: “É preciso melhorar o porto tanto do ponto de vista econômico como estético e sobretudo higiênico.”
[5] O princípio de “isolar espacial e temporalmente implica reunir ordenadamente”, difundido pelo movimento que se conhece como “medicalização (ou normalização / higienização) das cidades” observados no Brasil durante a segunda metade do século passado é abordado de uma forma bastante interessante pur Roberto Machado Et All  em “Danação da Norma : Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil”.
[6] Alguns historiadores sustentan que de 1773 a 1778 teria sido construído uma grande muralha na cidade, com o objetivo de proteger os seus habitantes dos invasores espanhóis. O suposto muro percorreria as atuais ruas Washington Luís, Riachuelo e Pinto Bandeira, com começo e fim à beira d’ água. O portão desse muro ficaria ao lado do lugar onde agora está o Viaduto Loureiro da Silva.
[7] A maior enchente da história da cidade de Porto Alegre que trouxe muitos danos e transtornos para os moradores e para os seus patrimônios pessoais.
  O primeiro registro de enchente em Porto Alegre é de 1833. Outras aconteceram em 1841, 1847 e 1850, mas nenhuma delas foi como a de 1873 que desabrigou famílias às margens do Guaíba e do Riacho. Mais sete aconteceram em 1897, 1898, 1905 e três em 1912 e se chega então a maior de todas, a de 1941, considerada uma catástrofe como definida pelos jornais da época. Na enchente de 1926 começaram as medições. Naquele ano a precipitação foi de 313,7 mm; na de 1928 foi de 225,5 mm; na de 1936 foi de 316 mm e na de 1941 foi de 619,4 mm, a maior de todas.

Um comentário:

Jacomini disse...

Praticamente uma monografia.