ETNOGRAFIA DE RUA
Autor: Jacques Jacomini
RELATO DA
SAÍDA A CAMPO
Novembro de 1997
Inicio a minha observação
a partir do momento que me aproximo do Largo Glênio Peres e arredores do
Mercado Público de Porto Alegre. Ao passar pelo largo, observo muitas pessoas
que circulam pelo local com toda a “pressa” originária de um grande centro
urbano. Apesar da “pressa” (ou aparente falta de tempo), algumas pessoas param
e ficam observando os “artistas” que atuam naquele local. Destacaria o
tradicional vendedor de remédios naturais que, com recursos diversos (aparelho
de som, animais exóticos como cobras, apelo teatral e dramático), tenta vender
os seus produtos no Largo e nas praças da cidade, sendo assim já bastante
conhecido da população; e um músico que tocava violino, utilizando alguns
recursos sonoros como caixas de som e amplificadores, chamando bastante a
atenção das pessoas que por ali passavam. Pude observar o Mercado Público que,
totalmente restaurado, estava enfeitado com painéis e desenhos alusivos a Primeira
Bienal do Mercosul, evento cultural que tem mobilizado muitas pessoas na
capital. Vencido o Largo, nos aproximamos da Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, passo a me encomodar um pouco com o grande fluxo de pessoas e procuro
então me afastar das ruas mais centrais, andando em direção a Avenida Mauá,
onde se encontra o Caís do Porto, ponto que escolhemos para iniciar a nossa
etnografia de rua. A tentativa de evitar o grande fluxo de pessoas,
afastando-me das ruas centrais, e caminhando pela Av. Mauá não foi muito
promissora, pois também ali o tráfego estava complicado, principalmente em
função de alguns caminhões que descarregavam cargas nas proximidades do Prédio
dos Correios e Telégrafos prejudicando assim o trânsito de pedestres naquele
local. Passo a mapear os principais vizinhos do Caís do Porto, dentre eles os
Correios e Telégrafos, Secretaria da Fazenda, Delegacia Regional do Trabalho,
terminais de ônibus coletivos urbanos de Porto Alegre e grande Porto Alegre
(Viamão) e o Instituto Santa Marta (SUS).
A travessia da Av. Mauá
(em direção ao Cais do Porto) é, sem nenhuma dúvida, “uma manobra bastante
arriscada”. Neste local o trânsito de veículos é muito grande e a velocidade
média dos automóveis, caminhões e coletivos também é alta em função da avenida
ser extensa (uma grande reta), larga
(com 3 faixas de rolagem) e não existir nenhum dispositivo inibidor da
velocidade (com exceção do semáforo). Existe uma faixa de segurança e uma
semáforo quase em frente a entrada principal do Caís do Porto, o que,
teoricamente, facilitaria a travessia dos pedestres, no entanto nem sempre é
bem assim. Os motoristas costumam aproveitar ao máximo o tempo destinado para a
sua travessia, transitando no momento em que o sinal fica no amarelo e até nos
primeiros instantes em que o sinal aponta a cor vermelha, ou seja, propõe a sua
parada e permite a passagem para o pedestre.
Portanto, o fato de o sinal estar apontando a travessia para o pedestre
(vermelho para os motoristas) não representa uma situação de travessia segura
para este. Uma outra situação que representa bastante risco para o transeunte
que decide atravessar a Avenida é aquela em que o sinal muda quando o pedestre
encontra-se no meio ou quase no final da travessia da Avenida. Neste caso, a
pessoa precisa correr ou pular a fim de que não sege apanhada por um veículo,
pois observei que os motoristas decidem aproveitar ao máximo todos os segundos
destinados a sua travessia, não abrindo mão assim dos primeiros instantes da
exposição do sinal verde, mesmo que o pedestre ainda se encontre no meio da sua
travessia. Em resumo, atravessar uma avenida no centro da cidade não é uma
tarefa muito fácil e nem muito tranqüila, pois exige do pedestre bastante
atenção e perspicácia para perceber o momento exato que a travessia pode ser
realizada sem nenhum risco para a sua segurança pessoal. Esta situação pode ser
bem mais problemática para os idosos, crianças, gestantes e deficientes físicos
por razões óbvias.
Vencida a travessia da
Avenida Mauá, entro no portão principal do Caís do Porto. Entrando, a minha
esquerda, encontro o posto da guarda portuária, onde um cidadão faz a segurança
no local. Decidi solicitar informações sobre como deveria proceder para realizar
a visitação naquele local. Fui informado que deveria me dirigir ao prédio da
administração do Porto, onde deveria solicitar uma autorização (por escrito)
para realizar a visita. Assim procedi, subindo ao quarto andar do prédio
apontado pelo guarda, onde em contanto com a funcionária Dulce consegui a
permissão, após ter me identificado e externado o objetivo da minha visita
naquele local. De posse da autorização, me dirigi ao portão de acesso do Caís,
apresentei a autorização para um outro guarda que a reteu, permitindo a minha
entrada e informando que eu poderia visitar todo o Caís em sua parte em que
estava a minha direita, e a parte que ficava a minha esquerda não poderia ser
acessada por ser “área operacional”, palavras dos funcionários para referir a
parte onde existe intensa atividade de carregadores, guindastes, carga e
descarga de containers, etc.
Neste momento, já na
beira do Rio, acontece o meu primeiro
contato com algo que me acompanharia, ou até me indicaria uma determinada
trajetória nesta visita ao Cais do Porto do Rio Guaíba, os trilhos utilizados
para a locomoção de algumas máquinas
e/ou guindastes que não saberia precisar em detalhes neste momento. Observo que
estes trilhos estão sendo usados pelos guindastes que estão a minha esquerda
(lado Operacional). Na minha direita os trilhos continuam existindo, mas
parecem não estar sendo usados para o deslocamento dos guindastes observados a
minha esquerda , fato que me leva a supor uma provável restruturação
físico-espacial deste local, pois a existência dos trilhos no meu lado direito
supõe a existência destes mesmos guindastes operando em um outro momento (outra
época e organização deste espaço) anterior a este.
A minha direita, tenho o
Barco Cisne Branco ancorado com alguns homens no seu interior, parece que
trabalham e organizam algumas coisas no barco. Observando o barco estão um
grupo de alunos de uma escola que realizam uma visita ao Caís. Fotografam e são
fotografados, conversam com os seus professores sobre o barco, sobre o rio, ...
parecem estar gostando bastante do passeio, pois aparentam muita satisfação,
descontração e interesse por tudo o que vêem ao seu redor. De fato, penso que
nem poderia ser diferente, entre outros motivos, por estarmos vivendo um dia
muito ensolarado, com temperaturas altas, céu claro e uma brisa gostosa a
sombra.
O Barco Cisne Branco traz
um sistema do som que ligado, espalha pelo ambiente músicas veiculadas por uma
rádio local da cidade de Porto Alegre. Esta sonoridade traz, segundo o meu
entendimento, consigo uma sensação de descontração para as pessoas que visitam
o local.
Olhando para o interior
do rio, vejo a primeira embarcação que circula pelo local, ela traz uma carga
de areia e se desloca lentamente pelas águas calmas do Rio Guaiba. Na mesma
direção podemos observar o topo de prédio que se encontra na Ilha do Presídio,
ponto próximo ao Cais.
Ainda a minha esquerda,
após passar pelo barco Cisne Branco, encontro trabalhadores que descarregam
determinada carga de uma carreta estacionada neste local.
Vou caminhando a fim de
explorar a região que me foi permitida o acesso, ou seja, lado direito de quem
entra no portão principal do Caís do Porto. Após passar pelo primeiro armazém
B1 (no seu interior estão grande rolos de papel, e pequenos pacotes também de
papel), onde trabalhadores trabalhavam na descarga de determinado produto, me
encontro nos fundos do prédio da administração onde a bem pouco tempo estava
solicitando a autorização para realizar esta visitação. Após este prédio, passo
por um outro armazém B2 fechado e sem nenhuma movimentação de pessoas.
Estacionado neste local
duas grandes carretas com cargas que parecem ser grandes transformadores de
energia elétrica. Os caminhões que puxam a carreta são caminhões do tipo “fora
de estrada”, realmente muito grandes e
contam com sinalizações especiais que chamam a atenção para o seu excesso de
largura e comprimento (diante das dimensões normais utilizadas pelos veículos
tradicionais). Ao me aproximar de uma das carretas, vejo que a altura das rodas chegam próximo ao meu ombro. Como
tenho 1,76 m de altura, a altura das rodas chegam a, aproximadamente, 1,40 m,
são, portanto bastante expressivas.
Após as carretas, vejo
mais três supostos transformadores colocados em linha, os quais suponho estarem
esperando para serem carregados. Faixas estão colocadas nestes transformadores
estampando o nome da empresa de destino (ou de origem), COENSA.
Olhando a minha esquerda,
avisto a Ponte do Rio Guaíba (em direção a cidade de Guaíba) e algumas ilhas do
mesmo rio. Na minha frente mais um prédio, onde leio Fundação Nacional de Saúde
(Vigilância Sanitária), local onde funciona algum setor deste órgão.
Logo a minha direita
existe um portão que encontra-se aberto
e dá acesso ao Caís do Porto. Ao contrário do portão principal, neste não
existem guardas nem outro tipo de segurança que dificultem o acesso. Passo pelo
portão e começo a percorrer a rua que é paralela ao rio, no interior do muro da
Mauá, ou seja, entre o muro e o rio.
Percorrendo esta rua
chego ao primeiro (de uma série) ancoradouro na seqüência de quem vem do portão
principal do Caís do Porto em direção a cidade de Canoas. O primeiro é um
ancoradouro onde encontramos apenas alguns barcos de pequeno porte. Neste local
existe uma placa onde leio: “Grêmio Náutico União, Estação Fluvial Nilton
Silveira Neto, Embarque, Sede Ilha do Pavão”. Nas proximidades do prédio do
Palácio do Comércio, me deparo coma estação dos bombeiros. Na parede está
estampada os símbolos e uma mensagem (ou lema) do 3o. grupo de
bombeiros da brigada militar : “Homem do salvamento, estar seguro, trabalhar
com segurança, produzir segurança, mais do que um lema, uma filosofia em ação.”
Passo a perceber que, em
verdade, o Caís do Porto possui toda uma cultura muita própria e muito sua.
Cada ancoradouro, cada espaço ou cada ator social que aqui atua está inserido
numa lógica e numa racionalidade que para ser percebida em sua integralidade
demandaria uma investigação muito mais minuciosa e elaborada do que por ora
realizo. É um pouco óbvio o que estou afirmando, no entanto é interessante de
registrar esta minha percepção de que somente um envolvimento e uma interação
maior com este local me permitiria perceber e reconstruir a “subjetividade
portuária”, fato que nos revelaria em
detalhes a verdadeira dinâmica, a real estruturação, organização e normalização
deste “espaço não - urbano” da cidade de Porto Alegre.
Voltando a descrição
físico-espacial do lugar, me aproximo do prédio C3, onde leio garagem e oficina
APPA - Portão 01. Atento para a
cobertura da rua que estou percorrendo que é de pedras do tipo paralelepípedo.
Caminho no sentido centro bairro (no caso Centro de Porto Alegre - Canoas) e a
minha direita tenho um trilho (o mesmo que começou o seu traçado logo na
entrada do Caís) que percorre toda a rua, decido seguir a sua trajetória, pois
percebo que ,apesar de estar atualmente em desuso, este trilho já representou
uma determinada dinâmica de trabalho do Caís do Porto. Seguí-lo, ou percorrê-lo
é atitude óbvia para quem tenta perceber o que este trilho e o que este chão
podem estar querendo “falar” para quem o “escuta” (ou quem com ele dialoga).
Avisto o prédio C4 que tem as portas abertas e máquinas no seu interior, no
entanto não existe movimento de trabalhadores neste momento (viria a saber,
mais tarde que o que estava aqui acondicionado era sal). Uma placa estampa a
mensagem “Proibida a entrada” ao lado deste prédio (na verdade estas placas
foram encontradas em vários locais do Caís, denotando as estratégias de
contenção e normalização deste espaço, porém nem sempre elas pareceram atuais e
operantes). Percorrendo mais um trecho da rua chegou a um outro ancoradouro
(02) onde estão atracados navios de grande porte, Navio Taquari, Itapuã,
... Fiquei tão impressionado com o
tamanho das embarcações que passei a tentar quantificar o seu tamanho: eles
teriam, aproximadamente, uns 10 metros de largura e uns 30 de comprimento.
Neste mesmo ancoradouro, observo várias outras embarcações de menor porte que
as três anteriores, apresentando um péssimo estado de conservação o que permite
suprimir até que elas estão totalmente fora de atividade.
Continuo caminhando, em
certo momento o capim esconde os trilhos e passo a pensar se estou seguindo a
trajetória dos trilhos ou são os trilhos que acompanham a minha caminhada ? A
resposta não é minha neste momento. Avisto um outro prédio que está mal conservado
e tem escrito em suas paredes anúncios de venda de gelo.
Me aproximando da Elevada
da Conceição, olho para o muro que separa a cidade do Rio e percebo a “força”
deste muro. É realmente um aparelho delimitador espacial que remonta a
perspectiva da percepção “intra-muros” e “extra-muro” como a que já trabalhei
em casos de realidades institucionais do estilo manicomial. Em outras palavras,
a cidade está excluída deste espaço e vice-versa, o que nos coloca claramente a
necessidade de se separar o que é urbano do “não - urbano”, ou a lógica urbana
da lógica “não - urbana”. Este é um ponto (espacialidade do Caís) de análise
deste local e desta lógica local que demandaria também um esforço maior de
análise e de interação, como já havia afirmado antes. Nas proximidades da
Elevada da Conceição observo uma espécie de portão (na extensão do muro) que
parece não ser utilizado visto a suas características de conservação e dos
capins que o entornam.
Caminhando mais um pouco
avisto um outro prédio onde leio: Centro Integrado de Comercialização agrícola
e, novamente, Venda de Gelo. Este prédio está desocupado e desabitado, além de
mal conservado como o anterior. Ao lado do muro encontro bastante lixo neste
trecho da caminhada, parece que na medida em que nos afastamos do portão
principal do Caís do Porto aumenta o desleixo, a sujeira, a má conservação dos
prédios, inexistência de atividades nos prédios, etc. Ou seja, na medida em que
nos afastamos do “centro” deste local o que era belo, policiado e bem cuidado
agora é o oposto de tudo isso.
Chego ao terceiro ancoradouro e observo alguns barcos de grande porte. Uma
das embarcações é parecida com as que carregam areia, não sei exatamente o nome
específico. Posso perceber, então, mais um bloco de prédios que é o (c6), onde
observo algumas caixas garrafas de bebidas sendo transportadas. O prédio ao lado esta aparentemente sem
atividade, não tem pessoas que circulam ou que estão trabalhando neste local. Alguns
carros passam por mim e suponho que são funcionário que, nesse momento são
11:25, estão talvez indo para de almoço.
Me encontrava agora nas proximidades da rodoviária e da elevada da Conceição. Passo
a ter a imprenssão que esta estrada vai
mais longe do que eu imaginei, portanto seria necessário ter uma condução para
explorá-la em toda a sua extensão.
Tenho a minha direita o terminal do
trensurb pessoas onde aguardam a chegada do trem. Me parece que este seria o
terminal Estação Rodoviária. Vejo dois caminhões velhos estacionados ao lado do referido prédio. O
Trênsurb acaba de chegar no terminal e as pessoas que o aguardavam passam a
trafegar nele. Neste momento, passo por cima dos trilhos que me eu estava acompanhando, (ou dos trilhos
que acabaram por definir a minha trajetória, ou trilhos me trouxeram até aqui,
ou ...) ou seja eles cruzaram a rua em direção ao rio. Neste momento fico
admirado com o que estou vendo: uma caminhão,
do tipo tombadeira, estaciona ao lado do prédio C6 e operários colocam caixas de garrafas de vidro neste caminhão e
ficam quebrando as garrafas. Parece que
garrafas de vidros realmente não são mais importante, pois estão
quebrando e colocando dentro da tombadeira.
Sinto a necessidade curiosidade de
adentrar e explorar mais essa estrada que continua a minha frente, porém vou
retornar, até porque os trilhos me
trouxeram até aqui. Neste momento acontece algo muito interessante: vejo um
senhor sair do prédio onde os operários quebravam as garrafas e decido passar a
caminhar ao seu lado conversando com ele (em direção ao portão principal do Caís,
ou seja, retornando), a fim de conhecê-lo e, ao mesmo tempo, conseguir algumas
informações sobre a dinâmica do Caís que se apresentavam como uma incógnita
para mim.O diálogo foi mais ou menos este que passo a transcrever:
Jaques: Bom dia, tudo bem?
Sanislau: Tudo bem
J - O Senhor trabalha aqui?
S - Sim, sou vigia. Há muitos anos.
J - Antes do Trensurb já tinha o muro ?
S - Estão para derrubar, isso deixa a
cidade feia.
J - afastou as pessoas do rio?
J - Claro, vê só, isso ai está tudo
parado (aponta para os barcos atracados), não trabalha mais, de dois em dois
anos tem que fazer vistoria, pintura nova, trocar a chapa.
J - Como faz para pintar, tem que tirar
da água, onde é feito isso ?
S -
no estaleiro Só, na Ilha da Pintada. Se derrubassem esse muro voltava as
pessoas a conhecer mais, ... Tem um projeto para ser derrubado
J - Devem ter medo de dar um enchente
que possa inundar a cidade ? Em 1941 o senhor estava aqui ?
S - Lá na rua da praia tinha água.
J - Até hoje estão com medo, quanto
tempo faz?
(...)
S - Esses bombeiros atende mais é
salvamento. Esses barquinhos pequenos são para passeio o para os pescador
(...)
S- São de pescador
J - Esses caminhões recolhem o peixe ?
S -Levam para o mercado
J - Será que da peixe bom, e pode
pescar ?
S - pode tem que ter a licença.
J - Aquela ilha que se vê é a ilha do
presidio?
S - era uma deposito de póuvora
J - Foi ali que prenderam os presos
políticos em 64?
J - Guardava armamento, e o senhor
estava indo para onde ?
J - E estes trilhos ?
S -
Buscavam as cargas dentro do armazém.
Foi uma conversa muito interessante de,
aproximadamente, 20 minutos com um cidadão de aparentemente 60 anos que me deu
informações preciosas sobre o Caís do Porto e parte de sua dinâmica. Após a
esta caminhada de retorno, encerrei a minha observação.
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