segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Água




não mexe comigo.

não mexe comigo, que eu não ando só.

eu não ando só.

não mexe, não.

eu tenho zumbi dos palmares, tenho besouro (lenda da capoeira), o chefe dos tupis.

sou tupinambá.

tenho os erês, caboclo-boiadeiro, mãos-de-cura, morubixabas, cocares, arco-íris, zarabatanas, curare, flechas & altares.

tenho a velocidade da luz, o escuro da mata escura, o breu, o silêncio, a espera.

(o tempo sempre a meu favor.)

todos os pajés em minha companhia.

o menino deus brinca & dorme nos meus sonhos, o poeta (português) me contou.

não misturo. não me dobro.

rainha do mar anda de mãos dadas comigo. me ensina o baile das ondas & canta canta canta para mim.

é do ouro de oxum que é feita a armadura que guarda o meu corpo, garante meu sangue, minha garganta. o veneno do mal não acha passagem.

me sumo no vento. cavalgo no raio de iansã. giro o mundo. viro, reviro. vôo entre as estrelas.

vou além. me recolho no esplendor das nebulosas, descanso nos vales, montanhas, durmo na forja de ogum guerreiro.

rezo com as três marias no céu.

mergulho no calor da lava dos vulcões: corpo vivo de xangô.

não ando no breu nem ando na treva.

medo não me alcança.

no deserto (sozinho, apenas comigo mesmo) me acho.

faço cobra morder o rabo. faço escorpião virar pirilampo.

fulminar aquele que é injusto, aquele que maltrata, aquele que transforma a vida nas mazelas a que assistimos no dia-a-dia:

tu, pessoa nefasta!

(eu não provo do seu fel, eu não piso o seu chão, e para onde você for, pessoa nefasta, não leva meu nome, não.)

onde vai, “valente”?…

você, pessoa nefasta, secou. seus olhos insones secaram. seus olhos não vêem brotar a relva que cresce livre & verde, longe da sua cegueira. seus ouvidos se fecharam a qualquer som. o próprio umbigo é a única coisa que interessa.

tu, pessoa nefasta, estás tão mirrada, que nem o diabo te ambiciona: não tens alma. tu, pessoa nefasta, pessoa que corrompe a vida, pessoa que coloca na boca dos seus semelhantes o gosto de terra & sangue, és o oco do oco do oco do “sem fim” do mundo. um nada.

(o que é teu, pessoa nefasta, já está guardado. não sou eu quem vou te dar. é a vida & sua reviravolta ante tantos maus tratos propagados por ti. trata-se da lei da ação & re-ação.)

eu posso engolir você, pessoa nefasta, só para cuspir depois.

minha fome é matéria que você não alcança: desde o leite do peito de minha mãe, mulher sempre linda & benvinda, até o sem fim dos versos versos versos que brotam no poeta, versos versos versos que brotam em toda poesia.

se choro, e quando choro & minha lágrima cai, é para regar o capim que alimenta a vida. chorando, eu refaço as nascentes que você, pessoa nefasta, secou.

se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal & sortilégio.

vivo de cara para o vento. na chuva. e quero me molhar.

sou como a haste fina: qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta.

não mexe comigo.

não mexe comigo, que eu não ando só.

eu não ando só.

não mexe, não.
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(Aos senhores, uma das faixas do novo trabalho de Maria Bethânia, diva maior da minha vida, canção do SOFISTICADO poeta-compositor Paulo César Pinheiro & texto — narrado por entre os versos da canção — da própria Bethânia. Esta é a primeira vez que a artista grava, em disco, um texto de sua própria autoria.

Me impressiona, sempre & muito, o quanto me vejo traduzido por Bethânia.

Deliciem-se com este mimo!

Beijo todos!
Paulo Sabino.)
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(do site: Youtube. canção extraída do álbum: Oásis de Bethânia. artista: Maria Bethânia. gravadora: Biscoito Fino. canção: Carta de amor. autor da canção: Paulo César Pinheiro. autora do texto narrado: Maria Bethânia.)


Extraído de

https://prosaempoema.com/2012/04/05/carta-de-amor/


Em 05/09/2016

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