Trechos do livro “Esculpir o Tempo”,
de Andrei Tarkovski
1)Cartas
escritas pelos espectadores de “O Espelho”: a opinião do público
Devo confessar que lia com a
máxima atenção e grande interesse — em alguns momentos com tristeza, mas, em
outros com extraordinário entusiasmo — as cartas de pessoas que haviam visto os
meus filmes; nos anos em que trabalhei na União Soviética, essas cartas vieram
a constituir uma coleção impressionante e variada de coisas que as pessoas
desejavam saber, ou que se sentiam incapazes de compreender.
Gostaria de citar aqui algumas
das cartas mais características, para
ilustrar o tipo de contato — às vezes de absoluta incompreensão — que eu
mantinha com o meu público.
Uma engenheira civil de
Leningrado escreveu: "Vi seu filme, 0 Espelho. Assisti até o fim,
apesar da grande dor de cabeça que me foi provocada na primeira meia hora pelas
tentativas de analisá-lo, ou de ao menos compreender alguma coisa do que nele
se passava, alguma relação entre os personagens, os acontecimentos e as
recordações. ... Nós, pobres espectadores, vemos filmes que são bons, maus,
muito maus, banais ou extremamente originais. Porém, no caso de qualquer um
desses filmes, podemos sempre entender, ficar entusiasmados ou entediados,
conforme o caso, mas... o que dizer do seu filme?! ... ."
Um engenheiro de equipamentos de
Kalinin também ficou terrivelmente indignado: "Faz meia hora que saí do
cinema, onde assisti ao seu filme, 0 Espelho. Pois muito bem, camarada
diretor!! Também o viu? A impressão que tenho é a de que há algo de doentio
nesse filme ... Desejo-lhe todo o sucesso em sua carreira,mas asseguro-lhe que
não precisamos de filmes assim."
Quanto a mim, ao receber cartas
como essa, costumava desesperar-me: afinal, para quem eu estava trabalhando, e
por quê? O que me reconfortava um pouco era um outro tipo de espectador, com
suas cartas cheias de incompreensão, mas em que ao menos se percebia o desejo
verdadeiro de compreender a minha maneira de ver as coisas. Por exemplo:
"Certamente não sou o primeiro, nem serei o último, a escrever-lhe
completamente desnorteado, pedindo ajuda para entender 0 Espelho. Em si,
os episódios são muito bons, mas como ligá-los entre si?" De Leningrado,
outra mulher escreveu: "O filme é tão diferente de tudo o que já vi, que
não estou preparada para entendê-lo, tanto no que diz respeito à forma quanto
ao conteúdo. Você poderia explicá-lo? Não que se possa dizer que eu nada
entenda de cinema em termos gerais... Vi os seus filmes anteriores, A Infância
de Ivan e Andrei Rublev, e os entendi bem. Mas, quanto a O Espelho... Antes da projeção do filme,
seria necessário preparar os espectadores através de algum tipo de introdução.
Depois de vê-lo, ficamos irritados com a nossa impotência e a nossa obtusidade.
Com todo respeito, Andrei, se não lhe for possível responder detalhadamente a minha carta, diga-me
ao menos onde posso ler alguma coisa sobre o filme."
Infelizmente, não havia quaisquer
leituras que eu pudesse recomendar a esses correspondentes; não existiam
publicações de nenhum tipo sobre 0 Espelho, a menos que se considere
como tal a condenação pública do meu filme como inadmissivelmente
"elitista", feita pelos meus colegas numa reunião do Instituto de
Cinematografia do Estado e do Sindicato dos Cineastas, e publicada na revista Arte
do Cinema.
O que me impediu de desistir de
tudo, porém, foi a convicção, c ada vez
maior, de que havia pessoas interessadas no meu trabalho, e que na verdade
esperavam ansiosamente pelos meus filmes. O único problema, aparentemente, era
que ninguém estava interessado em promover esse contato com o meu público.
Um dos membros do Instituto de
Física da Academia de Ciências enviou-me uma nota publicada no jornal mural
doInstituto: "O aparecimento do filme de Tarkovski, 0 EspeIho, despertou
grande interesse no IFAC, como, de resto, em toda a Moscou. Nenhum de nós pode
entender como Tarkovski conseguiu, através dos recursos oferecidos pelo cinema,
criar uma obra de tal profundidade filosófica. Habituado ao fato de que cinema
é sempre história, ação, personagens, e o costumeiro happy end, o público também tenta encontrar esses
componentes no filme de Tarkovski e, não os encontrando, sente-se
freqüentemente desapontado. De que fala esse filme? De um homem. Não daquele
homem em particular, cuja voz ressoa por trás da tela, representado por
Innokenti Smoktunovsky. É um filme sobre você, o seu pai, o seu avô, sobre
alguém que viverá depois de você, e que, ainda assim, será 'você'. Sobre um
homem que vive na terra, que é parte da terra, a qual, por sua vez, é parte
dele, sobre o fato de que um homem responde com a vida tanto ao passado quanto
ao futuro. Deve-se ver esse filme com simplicidade e ouvir a música de Bach e
os poemas de Arseni Tarkovski; vê-lo da mesma maneira como olha para as estrelas ou para o mar, ou,
ainda, como se admira uma paisagem. Não há, aqui, nenhuma lógica matemática,
pois esta não é capaz de explicar o que é o homem ou em que consiste o sentido
de sua vida."
Devo admitir que, mesmo quando
críticos profissionais elogiavam o meu trabalho, eu ficava muitas vezes
insatisfeitocom as suas idéias e os seus comentários — pelo menos, era
bastante
comum que eu sentisse que esses críticos eram indiferentes ao meu trabalho, ou
então que não tinham competência para julgá-lo: recorriam excessivamente a
clichês jornalísticos nas suas formulações, em vez de falarem sobre o efeito
íntimo e direto que o filme exercia sobre o público.
Mas então eu encontrava pessoas
que se haviam deixado impressionar pelo
meu filme, ou recebia cartas que me pareciam uma espécie de confissão sobre as
suas vidas, e começava a compreender qual era o objetivo do meu trabalho e a
ter consciência da minha vocação: deveres e responsabilidades para com as
pessoas, se assim o preferirem. (Na verdade, nunca pude convencer-me de que um
artista, sabendo que sua obra não era necessária para ninguém, conseguisse
trabalhar apenas para si próprio...).
Uma espectadora de Gorki
escreveu: "Obrigado por 0 Espelho. Tive uma infância exatamente
assim. ... Mas você...como pôde saber disso? Havia o mesmo vento,
e a mesma tempestade... 'Galka, ponha o gato para fora', gritava a minha
avó. ... O quarto estava escuro... E a lamparina a querosene também se
apagou, e o sentimento da volta de minha mãe enchia-me a alma... E
com que beleza você mostra o despertar da consciência de uma criança,
dos seus pensamentos! ... E, meu Deus, como é verdadeiro ... nós de fato
não conhecemos o rosto das nossas mães. E como é simples... Você sabe,
no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela iluminado
pelo seu talento, senti pela primeira vez na vida que não estava
sozinha... ."
Um
professor de Novosibirsk escreveu: "Nunca escrevi a nenhum autor para dizer o que sinto sobre um livro ou filme.
Este, porém, é um caso especial: o filme livra o homem do encantamento do
silêncio, permite que ele liberte o espírito das ansiedades e das coisas vãs
que o oprimem. Participei de um debate sobre o filme. Tanto os
"físicos"quanto os "líricos" foram unânimes: o filme é
profundamente humano, honesto e relevante — tudo isso se deve ao seu autor. E
todos os que falaram, disseram: 'Este filme fala de mim.' "
Uma
operária de Novosibirsk escreveu: "Na semana passada, vi o seu filme
quatro vezes. E não fui ao cinema simplesmente para vê-lo, mas, também, para
passar algumas horas vivendo uma vida real, com artistas e seres humanos verdadeiros.
... Todas as coisas que me atormentam, tudo o que não tenho e desejaria ter, que
me deixa indignada, enojada ou que me sufoca, todas as coisas que me iluminam e
me aquecem, e pelas quais vivo, e tudo aquilo que me destrói — está tudo ali,
no seu filme; vejo-o como se num espelho. Pela primeira vez na minha vida um
filme tornou-se algo real para mim, e é por essa razão que vou vê-lo: quero impregnar-me
dele, para que possa realmente sentir-me viva."
Impossível encontrar um reconhecimento maior
daquilo que se está fazendo. O meu mais fervoroso desejo sempre foi o de
conseguir me expressar nos meus filmes, de dizer tudo com absoluta sinceridade,
sem impor aos outros os meus pontos de
vista. No entanto, se a visão de mundo transmitida pelo filme puder ser
reconhecida por outras pessoas como parte integrante de si próprias, como algo
a que nada, até agora, conseguira dar expressão, que estímulo maior para o meu
trabalho eu poderia desejar?
Uma mulher enviou-me uma carta que
lhe fora escrita pela filha, e cujas palavras representam, ao meu ver, uma
extraordinária afirmação da criação artística como uma forma de comunicação infinitamente
sutil e versátil: " . . . Quantas palavras uma pessoa conhece?",
pergunta ela à mãe. "Quantas ela usa na sua linguagem cotidiana?Cem,
duzentas, trezentas? Envolvemos os nossos sentimentos em palavras e tentamos
expressar através delas a tristeza e a alegria e todo tipo de emoções,
exatamente aquelas coisas que, na verdade, são impossíveis de expressar. Romeu
disse belas palavras a Julieta, palavras vivas e expressivas, mas elas
certamente não disseram nem a metade daquilo que dava a Romeu a sensação de que
o coração ia saltar-lhe do peito, que lhe prendia a respiração, e que levava
Julieta a esquecer-se de tudo, exceto do seu amor. Existe um outro tipo de
linguagem, uma outra forma de comunicação: a comunicação através de sentimentos
e imagens. Trata-se do contato que impede as pessoas de se tornarem
incomunicáveis e que põe por terra as barreiras. Vontade, sentimento, emoção —
eis o que elimina os obstáculos entre pessoas que, de outra forma,
encontrar-se-iam nos lados opostos de um espelho, nos lados opostos de uma porta.
... A tela se amplia, e o mundo, que antes se encontrava separado de nós, passa
a fazer parte de nós, tornando-se uma coisa real... E isto não ocorre através
do pequeno Andrei: trata-se do próprio Tarkovski dirigindo-se diretamente à
platéia, sentada do outro lado da tela. Não existe morte, existe
imortalidade. O tempo é uno e indiviso, como se diz num dos poemas: 'A uma
mesa, sentam-se avós e netos... .' A
propósito, mamãe, liguei-me a esse filme sobretudo por seu lado emocional, mas
estou certa de que podem existir outras maneiras de vê-lo. E quanto a você? Por
favor, escreva-me dizendo... ."
2)Sobre o roteiro de “O Espelho”:
Lembremo-nos
de Proust:
"Tão
afastadas se encontravam as torres e tão pouco me parecia aproximar-nos delas,
que fiquei atônito quando paramos, instantes depois, diante da igreja de
Martinville. Ignorava o motivo do prazer que tivera ao avistá-las no horizonte,
e a obrigação de procurar desvendá-lo me parecia muito penosa; tinha vontade de
guardar de reserva na cabeça aquelas linhas que se
moviam ao sol e não mais pensar
nelas por enquanto.... Sem confessar-me que aquilo que estava oculto atrás das
torres de Martinville devia ser algo assim como uma bela frase, pois que
aparecera sob a forma de palavras que me causavam prazer, pedi lápis e papel ao
doutor e, para aliviar a consciência e obedecer ao meu entusiasmo, compus,
apesar dos solavancos do carro, o pequeno trecho seguinte...Jamais tornei a
pensar em tal página, mas naquele instante, ao terminar de escrevê-la, na ponta
do assento onde o cocheiro do doutor costumava colocar um cesto com as aves que
comprara no mercado de Martinville, achei-me tão feliz, sentia que ela me havia
desembaraçado tão perfeitamente daquelas torres e do que ocultavam atrás de si,
que, como se fosse eu próprio uma galinha e acabasse de pôr um ovo, pus-me a
cantar a plenos pulmões."
Passei
por emoções exatamente iguais quando terminei de filmar 0 Espelho. Recordações
da infância que por tantos anos não me haviam deixado em paz, de repente
desapareceram como que por encanto, e finalmente deixei de sonhar com a casa em
que vivera tantos anos atrás.
Muitos
anos antes de fazer o filme eu tinha me decidido a simplesmente colocar no
papel as lembranças que me atormentavam; naquela altura, não pensava ainda em
fazer um
filme. Pretendia escrever uma
novela sobre a evacuação durante a guerra, e o enredo teria como ponto central
o instrutor militar da minha escola. Achei depois que o tema era muito frágil
para tornar-se uma novela, e nunca a escrevi. Mas o incidente, que me
impressionara profundamente
quando criança, continuou a me
atormentar e permaneceu vivo em minhas lembranças até tornar-se um episódio
menor do filme.
Quando
terminei a primeira versão do roteiro de 0 Espelho, originalmente
intitulado Um Dia branco, branco, percebi que, em termos
cinematográficos, minha concepção estava longe de ser clara; um simples
fragmento de minhas lembranças, cheio de uma tristeza elegíaca e de
nostalgia pela infância, não era o que eu queria. Era óbvio que faltava alguma
coisa ao roteiro, e o que faltava era crucial. Portanto, mesmo
quando o roteiro estava sendo apreciado pela primeira vez, a alma do
filme ainda não viera habitar-lhe o corpo. Eu tinha plena consciência de
que precisava encontrar uma idéia chave que o elevasse acima do nível de
uma reminiscência lírica.
Escrevi,
assim, uma segunda versão do roteiro: pretendia intercalar os episódios da
infância contidos na novela com fragmentos de uma entrevista franca com minha
mãe, justapondo, desse modo, duas formas paralelas de percepção do passado (a
da mãe e a do narrador) que adquiriria forma para o público através da
interação de duas projeções diferentes desse passado nas lembranças de duas
pessoas muito próximas uma da outra, mas de gerações diferentes. Ainda acho que
poderíamos ter obtido resultados interessantes e imprevisíveis dessa forma.
Não me
arrependo, porém, de ter depois abandonado também essa estrutura, que continuaria
sendo excessivamente direta e pouco sutil, e de ter substituído todas as
entrevistas
planejadas com a mãe por cenas
aromatizadas. Na verdade, nunca achei que os elementos da representação e do
documentário pudessem se unir de modo dinâmico. Eles se chocavam e
contradiziam, e sua combinação não teria passado de um exercício formal e
intelectual de montagem: uma unidade espúria, fundamentada em conceitos. Os
dois elementos carregavam concentrações de material muito diferentes, tempos e
tensões temporais também diversos: por
um lado, o tempo exato, real e
documentário das entrevistas, e, por outro, o tempo das memórias do narrador,
recriado pela representação dos atores.
As
transições entre o tempo subjetivo e ficcional e o tempo verdadeiro, do
documentário, de repente me pareceram pouco convincentes — artificiais e
monótonas, semelhantes a um jogo de pingue-pongue.
Minha
decisão de não montar um filme com dois planos temporais diferentes não
significa de forma alguma que, por
definição, seja impossível combinar material documentário
e material representado. Na
verdade, acho que, em 0 Espelho, as cenas de cine-jornal e as
representadas harmonizam-se de forma perfeitamente natural, tanto que já
ouvi mais de uma vez pessoas dizerem que pensavam que as seqüências de
cine-jornal eram reconstruções deliberadamente criadas para darem a
impressão de documentários verdadeiros: o elemento documentário
tornara-se uma parte orgânica do filme.
Consegui
este resultado graças ao material extraordinário que encontrei. Tive que
examinar milhares de metros de película antes de encontrar a seqüência do
Exército Soviético
atravessando o lago Sivash.
Fiquei perplexo, pois eu nunca me deparara com nada parecido. Em geral, o que encontrávamos
eram filmes de baixa qualidade, ou pequenos fragmentos registrando o cotidiano
do exército, ou, ainda, documentários que rescendiam muito a coisa planejada e
pouco a verdade. Eu estava começando a perder as esperanças e unificar toda
essa confusão num sentido temporal único, quando subitamente — algo de muito
inédito em
se tratando de um cine-jornal —
ali estava um registro de um dos
momentos mais dramáticos da história do avanço soviético de 1943. Era um
material único, e eu mal podia acreditar que se tivesse gasto tanto filme para
registrar um só acontecimento em observação contínua. Sem dúvida, a cena fora
filmada por um camera-man de extraordinário talento. Quando, na tela à
minha frente, e como que saídas do nada, surgiram aquelas pessoas devastadas
pelo esforço terrível e desumano daquele trágico momento histórico, tive
certeza de que aquele episódio tinha que se tornar o centro, a própria
essência, o coração e o sistema nervoso desse filme que tivera início
simplesmente como uma reminiscência lírica íntima.
Surgiu
na tela uma imagem de força dramática esmagadora — e era tudo meu,
especificamente meu, como se eu houvesse suportado a opressão e a dor. (A
propósito, foi este
o episódio que o chefe do Cinema
Estatal queria que eu deixasse fora do filme.) A cena era sobre aquele
sofrimento que é o preço do chamado progresso histórico, e sobre as incontáveis
vítimas que, desde tempos imemoriais, o mesmo exige. Era impossível acreditar,
por um momento, que tal sofrimento fosse destituído de significado. As imagens
falavam de imortalidade, e os poemas de Arseni Tarkovski foram a consumação do
episódio, pois davam voz ao seu significado fundamental. O documentário tinha
qualidades estéticas que atingiam um extraordinário grau de intensidade
emocional. Uma vez impressa na película, a verdade registrada nessa crônica de
uma autenticidade absoluta deixava de ser simplesmente semelhante à vida.
Tornava-se, de repente, uma imagem de sacrifício heróico e do preço
desse sacrifício: a imagem de um momento histórico decisivo, obtida a um custo
incalculável.
O
filme nos atingia com uma pungência intensa e lancinante, pois o que havia nas
tomadas era simplesmente gente. Gente se arrastando, com lama até os joelhos,
através de um pântano interminável que se estendia para além do horizonte, sob
um céu uniforme e esbranquiçado. Quase não houve sobreviventes. A perspectiva
ilimitada desses momentos registrados pelo filme criava um efeito próximo à
catarse. Mais tarde vim a saber que o camera-man do exército que fizera
o filme, com uma consciência tão extraordinária dos acontecimentos ocorrendo ao seu redor, havia
sido morto naquele mesmo dia.
Quando só tínhamos quatrocentos
metros de filme para prosseguir com 0 Espelho ou, em outras palavras,
cerca de treze minutos de projeção, o filme ainda não existia. Os sonhos da
infância do narrador haviam sido determinados e filmados, mas mesmo essas
seqüências não conseguiam dar ao filme uma estrutura unificada.
Em sua
forma atual, o filme só passou a existir com a introdução da esposa do narrador
na trama da narrativa; ela não aparecia nem no projeto original, nem no
roteiro. Gostamos muito de Margarita Terekhova no papel de mãe do narrador, mas
sentíamos o tempo todo que o papel a ela atribuído no roteiro original não
bastava para trazer à tona e utilizar todas as suas enormes possibilidades
interpretativas. Decidimos, então, escrever mais alguns episódios e lhe demos o
papel da esposa. Depois disso, tivemos a idéia de alternar na montagem
episódios do passado e do presente do autor.
Para
começar, meu brilhante co-autor — Alexander Misarin— e eu quisemos inserir no
novo diálogo uma afirmação das nossas concepções sobre os fundamentos estéticos
e morais da obra de arte; felizmente, no entanto, tivemos o bom senso de
repensar essa intenção. Acredito que algumas dessas idéias agora fluem,
imperceptivelmente, por todo o filme.
Este
relato da realização de 0 Espelho ilustra o meu ponto de vista de que o
roteiro é uma estrutura frágil, viva e em constante mutação, e que um filme só
está pronto no momento
em que finalmente terminamos de
trabalhar com ele. O roteiro é a base a partir da qual tem início a exploração
e, durante todo o tempo em que estou trabalhando num filme, sinto a angústia
permanente de que talvez nada resulte dele.
0
Espelho é um
exemplo óbvio de como alguns dos meus princípios de trabalho em relação ao
roteiro foram levados a suas conclusões lógicas. Muita coisa só veio a ser
pensada,
formulada e feita ao longo do
processo de filmagem. Os roteiros dos meus filmes anteriores foram mais
claramente estruturados. Quando começamos a fazer 0 Espelho decidimos
que, por uma questão de princípios, o filme não seria elaborado e planejado
antecipadamente, antes que o material fosse filmado. Era importante ver como,
sob quais condições, o filme poderia, por assim dizer, adquirir forma por si
próprio: dependendo das tomadas, do contato com os atores,
através da construção dos sets
e da forma como ele viesse a se adaptar às locações escolhidas.
Não
fizemos nenhum projeto antecipado para cenas e episódios, uma vez que não
pretendíamos trabalhar com entidades visuais já definidas: o que fizemos foi
desenvolver uma
clara percepção da atmosfera e
uma empatia com os personagens, o que exigiu no set uma concepção
plástica rigorosa. A única coisa que "vejo" antes de filmar, a única
coisa que imagino, se é que que vejo ou imagino alguma coisa, é o estado
interior, a tensão interior específica das cenas a serem filmadas e da
psicologia dos personagens. No entanto, desconheço ainda a forma precisa em que
tudo isso será moldado. Analiso todas as possibilidades do set, para
compreender através de que meios esse estado interior pode ser expressado no
filme. Assim que consigo fazê-lo, começo a filmar.
0
Espelho é também
a história da velha casa onde o narrador passou sua infância, da fazenda onde
ele nasceu e onde viveram seu pai e sua mãe. Esta casa, que com o passar dos
anos se transformara em ruínas, foi reconstruída, "ressuscitada" a
partir de fotografias da época e dos alicerces que ainda sobreviviam. Assim,
acabou ficando exatamente como fora quarenta anos antes. Quando mais tarde
levamos até lá minha mãe, que passara a infância naquele lugar
e naquela casa, sua reação
superou todas as minhas expectativas. O que ela experimentou foi uma volta ao
seu passado, e isso me deu a certeza de que estávamos no caminho certo. A casa
despertou nela os sentimentos que o filme pretendia expressar...
Diante
da casa, estendia-se um campo; lembro que crescia trigo-sarraceno entre ela e a
estrada que levava ao próximo vilarejo. O trigo-sarraceno é muito bonito quando
está em floração. As flores brancas, que dão o efeito de um campo coberto de
neve, ficaram em minhas lembranças como um dos detalhes essenciais e
inesquecíveis da minha infância. Porém, quando chegamos para decidir onde
filmaríamos, não havia trigo-sarraceno à vista — há anos o kolkhoz vinha
semeando os campos com trevo e aveia. Quando pedimos que semeassem
trigo-sarraceno, garantiram que a planta não crescia ali, pois o solo não
favorecia o seu cultivo. Apesar disso, arrendamos o campo e semeamos o trigo
por nossa própria conta e risco. As pessoas do kolkhoz não conseguiram
esconder o espanto quando viram o trigo brotar; quanto a nós, vimos essa
conquista como um bom presságío. Ela parecia nos dizer algo sobre a qualidade
especial da nossa memória — sobre sua capacidade de penetrar para além dos véus
estendidos pelo tempo, e era exatamente sobre isso o filme: essa era sua idéia
seminal.
Não
sei o que teria sido do filme se o trigo-sarraceno não crescesse... Nunca me
esquecerei do momento em que ele começou a florir.
Quando
comecei a filmar 0 Espelho, passei a refletir cada vez mais sobre o fato
de que, quando se leva a sério o trabalho que se realiza, um filme deixa de ser
apenas o próximo passo da nossa carreira, pois trata-se de um ato que irá
repercutir por toda nossa vida. Eu havia decidido que neste filme, pela
primeira vez, iria usar os recursos do cinema para falar de todas as coisas que
me eram mais caras, e que iria fazê-lo diretamente, sem usar quaisquer truques.
Foi
extremamente difícil explicar para as pessoas que não há nenhum significado
oculto no filme, que não há nada além do desejo de dizer a verdade. Muitas
vezes as minhas afir- mações provocaram incredulidade e até mesmo decepção.
Algumas pessoas evidentemente queriam mais: precisavam de símbolos secretos e
significados ocultos. Não estavam habituadas
à poética da imagem
cinematográfica. Eu também fiquei desapontado. Da parte do público, foi essa a
reação dos que se opuseram ao filme; quanto a meus colegas, atacaram-me com
ferocidade, acusando-me de falta de modéstia e de querer fazer um filme sobre
mim mesmo.
No
final, fomos salvos por uma única coisa — pela fé: a crença de que, como o
nosso trabalho era tão importante para nós, ele só podia tornar-se igualmente
importante para o público. O filme tinha por objetivo reconstruir as vidas de
pessoas que eu amara intensamente e que conhecia muito bem. Eu queria contar a
história da dor de um homem por achar que não pode recompensar a família por
tudo o que ela lhe deu. Ele sente que não a amou o suficiente, uma idéia que o
atormenta e da qual não consegue se desvencilhar.
Quando
falamos de coisas que nos são caras, ficamos imediatamente ansiosos por saber como
as pessoas irão reagir àquilo que dissemos, e desejamos proteger essas coisas,
defendê-las contra a incompreensão. Uma das nossas preocupações era imaginar de
que forma os públicos do futuro receberiam o filme, mas, ao mesmo tempo,
continuamos acreditando, com uma obstinação de maníacos, que seríamos
compreendidos. Nossa decisão foi confirmada pelas circunstâncias futuras; a
esse respeito, as cartas transcritas no começo deste livro dizem algo sobre o
que aconteceu. Eu não podia esperar por um nível mais alto de compreensão, e
tal reação da parte do público foi extremamente importante para o
desenvolvimento das minhas obras futuras.
0
Espelho não foi,
em absoluto, uma tentativa de falar sobre mim mesmo. Ele falava sobre meus
sentimentos para com pessoas que me eram muito queridas, sobre meu
relacionamento com elas, sobre minha eterna compaixão pelo seu sofrimento e
pelas minhas próprias falhas — o meu sentimento de dever não cumprido. Os
episódios dos quais o narrador se lembra num momento de crise profunda
provocam-lhe uma dor que não cessa até o último instante, enchendo-o de
tristeza e angústia...
3)Sobre a montagem do filme:
Devo
dizer que a montagem de 0 Espelho consumiu uma quantidade prodigiosa de
trabalho. Havia cerca de vinte ou mais variantes. Não me refiro simplesmente a
alterações na ordem de certas tomadas, mas a alterações fundamentais na própria
estrutura, na seqüência dos episódios. Em alguns momentos, tínhamos a impressão
de que seria impossível montar o filme, o que implicaria a existência de lapsos
imperdoáveis durante as filmagens. O filme não se sustentava, não ficava em pé,
fragmentava-se diante dos nossos olhos, não tinha unidade, nem as necessárias
conexões internas, nenhuma lógica. E então, um belo dia, quando, de certa
forma, tentávamos fazer uma última e desesperada recomposição — ali estava o
filme. O material adquiriu vida; as partes começaram a funcionar organicamente,
como se unidas por uma corrente sangüínea. Quando aquela derradeira e
desesperadoratentativa foi projetada na tela, o filme nasceu diante dos nossos olhos. Por muito tempo, eu
não consegui crer no milagre — o filme se sustentava.
Foi um
teste sério para verificarmos a qualidade das filmagens. Estava claro que as
partes se juntavam devido a uma tendência interior do material, que deve ter se
originado durante as filmagens; e, se não estávamos nos iludindo quanto ao fato
de o filme estar ali, a despeito de todas as nossas dificuldades, então as
partes do filme não poderiam ter feito outra coisa que não fosse juntar-se,
pois isso fazia parte da própria natureza das coisas. Tinha de acontecer, legítima
e espontaneamente, assim que reconhecêssemos o significado e o princípio vital
das tomadas. E, quando isso aconteceu, graças a Deus! — que grande alívio foi
para todos.
O próprio
tempo, fluindo através das tomadas, acabara por harmonizar-se e articular-se.
0
Espelho tem
cerca de duzentas tomadas, um número bastante reduzido quando se pensa que
filmes da mesma metragem costumam ter cerca de quinhentos; o número é pequeno devido
ao tamanho das tomadas...
4) Sobre a imagem cinematográfica do filme:
Vejamos o retrato feito por
Leonardo da Jovem com um Ramo de Zimbro, que usei em 0 Espelho, na
cena do breve encontro do pai com os filhos, quando ele vem para casa em
licença. Há nas imagens de Leonardo duas coisas fascinantes. Uma delas
é a extraordinária capacidade do artista examinar o objeto de fora, do
exterior, com um olhar que paira por cima do mundo. A outra consiste no
fato de o quadro nos atingir simultaneamente de duas maneiras opostas. É
impossível exprimir a impressão final que o quadro produz em nós. Nem mesmo é
possível dizer com certeza se gostamos ou não da mulher, se ela é simpática ou
desagradável. Ela é ao mesmo tempo atraente e repugnante. Há nela algo de
indizivelmente belo e ao mesmo tempo repulsivo, satânico; porém, não no sentido
romântico e sedutor do termo — trata-se, pelo contrário, de algo para além do
bem e do mal, de fascínio com um signo negativo. O retrato tem
um elemento de degeneração — e de
beleza. Em 0 Espelho, precisávamos dele para introduzir um elemento
atemporal nos momentos que se sucedem uns aos outros diante dos nossos
olhos e, ao mesmo tempo, para confrontar o retrato e a heroína,
enfatizando nela e na atriz Margarita Terekhova, a mesma capacidade de
ser simultaneamente encantadora e repugnante...
Se
tentarmos analisar o retrato de Leonardo, decompondo os seus elementos, a
tentativa não funcionará. Ou, de qualquer modo, não explicará nada, pois o
efeito emocional exercido sobre nós pela mulher retratada é poderoso exatamente
por ser impossível descobrir nela qualquer coisa que possamos privilegiar de
modo definido, é impossível extrair qualquer detalhe do contexto geral,
destacar qualquer impressão momentânea em detrimento de outra e fazê-la nossa,
ou chegar a um equilíbrio quanto à maneira de olhar a imagem que nos é
apresentada. E assim, abre-se diante de nós a possibilidade de uma interação
com o infinito, uma vez que a grande função da imagem artística é ser uma espécie
de detector do infinito... em direção ao qual nossa razão e nossos sentimentos
elevam-se num ímpeto alegre e arrebatador.
Este
sentimento é despertado pela integridade da imagem: ela nos atinge precisamente
pelo fato de ser impossível decompô-la. Considerada isoladamente, cada uma de
suas partes estará morta — ou, pelo contrário, o elemento mais íntimo talvez
revele as mesmas características da obra completa e acabada.
(...)
Irrita-me
sempre ver um artista justificar seu sistema de imagens com tendenciosidade ou
ideologia deliberada. Sou contra esse procedimento do artista, de permitir que
seus métodos sejam absolutamente visíveis. Muitas vezes me arrependo de ter
permitido que algumas tomadas permanecessem em meus filmes; elas me parecem
agora a prova de uma concessão que se insinuou em meus filmes por ter me
faltado a necessária coerência. Se ainda fosse possível, eu teria todo o prazer
em excluir a cena do galo de 0 Espelho, muito embora ela tenha causado
uma profunda impressão em muitos espectadores. Isso, porém, aconteceu porque eu
estava brincando de "perde-ganha" com o público.
Quando a protagonista do filme,
exausta e prestes a desmaiar, pensa se vai ou não cortar a cabeça do galo, nós
a filmamos em close-up, em alta velocidade nos últimos noventa
fotogramas, e com uma iluminação
evidentemente artificial. Uma vez que na tela esta cena aparece em câmera lenta, obtém-se um efeito de alargamento da
estrutura temporal — estamos levando o espectador a mergulhar no estado de
espírito da protagonista, estamos retardando aquele momento, acentuando-o. Isso
não é bom, pois a tomada começa a ter um significado puramente literário.
Deformamos o rosto da atriz independentemente dela, como se estivéssemos
representando o papel por ela. Servimos a emoção que desejamos, forçando a sua
exteriorização através de nossos próprios meios — os do diretor. O estado de
espírito do personagem fica excessivamente claro e legível. E na interpretação
do estado de espírito de um personagem, sempre se deve deixar algo em segredo.
Vejamos
um exemplo mais bem-sucedido de um procedimento semelhante, também extraído de 0
Espelho: alguns fotogramas da cena da tipografia também são filmados em
câmera lenta, mas, desta vez, o procedimento é quase imperceptível. Esforçamo-nos
para fazer tudo com muito cuidado e sutileza, para que o espectador não se
desse conta do lato imediatamente, mas tivesse apenas uma vaga sensação de que
algo estranho se passava. Não estávamos tentando enfatizar uma idéia através da
câmera lenta; o que pretendíamos era evocar um estado de espírito através de
outro meio que não o trabalho do ator.
No
cinema não existem problemas técnicos de expressão, desde que saibamos
exatamente o que dizer; se virmos, de dentro, cada célula de nosso filme e
conseguirmos senti-lo com precisão. Por exemplo, na cena do encontro casual da
protagonista com um estranho (representado por Anatoli Solonitsvn). depois que
ele se afastava, era importante que se desenhasse algum tipo de vínculo que
unisse essas duas pessoas cujo encontro parece ter se dado inteiramente por
acaso. Se, enquanto caminhava, ele se voltasse e a olhasse expressivamente,
tudo teria parecido linear e falso. Pensamos, então, na rajada de vento no
campo, que atrai a atenção do estranho por ser tão inesperada: é por isso que
ele olha para trás...
5) Sobre a realização gráfica do
filme:
Na
prática, nunca tive segredos para com meus colegas: pelo contrário, durante as
filmagens a equipe sempre trabalhou como um só homem. Isso porque, enquanto não
estivermos, por assim dizer, ligados por nossas artérias e nervos, enquanto nosso
sangue não começar a circular por um mesmo sistema, é simplesmente impossível
fazer um filme.
Durante
todo o tempo em que estávamos fazendo 0 Espelho, quase nunca nos
separávamos; falávamos sobre as coisas que cada um de nós conhecia e
amava, sobre o que nos
era caro e o que odiávamos, e era
comum que nos perdêssemos em nossas divagações sobre o filme. E a posição desta
ou daquela pessoa nos trabalhos não tinha a menor importância. Edward Artemiev,
por exemplo, compôs apenas alguns trechos da música do filme, mas sua
participação é tão importante quanto a de todos os outros, pois, sem a
colaboração de cada um, o filme não teria sido feito da forma que o foi.
Quando
o set foi construído sobre os alicerces da casa em ruínas, nós todos,
como membros da equipe, costumávamos ir até lá esperar pelo nascer do sol, para
sentirmos o que havia de especial no lugar, estudá-lo em climas diferentes e
observá-lo nos diferentes períodos do dia. Queríamos nos impregnar das
sensações das pessoas que haviam vivido na casa e presenciado, uns quarenta
anos antes, as mesmas auroras e crepúsculos, as mesmas chuvas e neblinas. Contagiávamo-nos
mutuamente com nossas recordações e com o sentimento de que a comunhão entre
nós era sagrada. No final do trabalho, separamo-nos com pesar, como se aquele fosse
o momento em que devíamos estar começando: na ocasião, quase nos havíamos
tornado parte uns dos outros.
No
caso de O Espelho, vocês podem imaginar quão sensíveis precisavam ser os
membros da equipe para que pudessem aceitar como sua uma idéia que não apenas
provinha de outra pessoa, mas que era
também profundamente pessoal; e, também, para ser franco, como me foi difícil
compartilhá- la com meus colegas, talvez ainda mais difícil do que com o
público — afinal, até o dia da estréia, o público não passa de uma espécie de
abstração remota.
6) Sobre a atuação em “O Espelho”:
Quando
faço um filme, tento não atormentar meus atores
com discussões, e não admito que o ator estabeleça uma ligação entre o
trecho que está representando e o filme em sua totalidade; às vezes, não
permito que ele o faça nem mesmo com relação às cenas imediatamente anteriores
ou posteriores. Por exemplo: na cena de 0 Espelho em que a protagonista
espera pelo marido, o pai dos seus filhos, sentada na cerca e fumando um
cigarro, achei melhor que Margarita Terekhova não conhecesse o enredo, que não
soubesse se o marido realmente voltaria. A história foi mantida em segredo para
que a atriz não reagisse a ela em algum nível inconsciente da sua mente, mas,
sim, para que vivesse aquele momento exatamente como minha mãe, seu protótipo,
o vivera no passado, sem saber o que seria feito da sua vida.
Não há dúvida de que o
comportamento da atriz teria sido diferente
caso ela soubesse como seria a sua relação futura com o marido; não apenas
diferente, mas também falsificado pelo conhecimento que ela teria da
continuidade da história. O sentimento
de estar condenada não poderia senão influenciar o trabalho da atriz naquela
etapa inicial da história. Em algum momento — de forma inconsciente, sem querer
contrariar a vontade do diretor — ela teria revelado alguns indícios do
sentimento de futilidade da espera, e nós também o teríamos sentido; na
verdade, o que precisávamos sentir nessa cena era a singularidade, o caráter
único, daquele momento, e não suas ligações com o resto da sua vida.
No
caso do meu filme, queríamos que a atriz sentisse aqueles momentos exatamente como teria feito em sua
vida, sem ter consciência do roteiro; naqueles instantes ela provavelmente teria
esperanças, depois as perderia, apenas para ressuscitá-las, em seguida...
Dentro da ação proposta, a espera pelo marido, a atriz tinha que viver seu
próprio e misterioso
fragmento de vida, sem saber para
onde este a levava.
É
claro que diferentes atores devem ser tratados de forma diferente. Terekhova
não conhecia o roteiro todo e representou seu papel em partes separadas. Quando
percebeu que eu não ia lhe contar o enredo nem explicar-lhe todo o seu papel,
ela ficou muito desconcertada... Desse modo, porém, os diferentes fragmentos
que ela interpretou (e que, mais tarde, combinei num único desenho como peças
de um mosaico), foram o resultado de sua intuição. No início, não foi fácil
trabalharmos juntos. Ela achava difícil acreditar que eu pudesse prever — por
ela, por assim dizer — a organização do seu papel num todo orgânico no final do
filme filme; em
outras palavras, ela achava
difícil confiar em mim.
7) Sobre a música em “O Espelho”:
A música
pode conferir ao material filmado uma inflexão lírica, nascida da experiência
do autor. Em 0 Espelho, por exemplo, que é um filme autobiográfico, a música
é introduzida muitas vezes como parte do material da própria vida, da
experiência espiritual do autor, sendo, portanto, um elemento vital do universo
do herói lírico do filme.
A
música eletrônica parece-me oferecer possibilidades infinitamente valiosas ao
cinema. Artemiev e eu a utilizamos em algumas cenas de 0 Espelho. Queríamos
que o som se assemelhasse ao de um eco terrestre, cheio de sugestões poéticas —
que fizesse lembrar sussurros, suspiros. As notas deveriam transmitir o fato de
que a realidade é condicional e, ao mesmo tempo, deveriam reproduzir com
exatidão estados de espírito específicos, os sons do mundo interior de uma
pessoa. No momento em que a ouvimos como ela é, e percebemos que está sendo
construída, a música eletrônica morre, e Artemiev precisou recorrer a
artifícios muito complexos para obter os sons que desejávamos. A música
eletrônica deve ser depurada de suas
origens "químicas",
para que, ao ouvi-la, possamos descobrir nela as notas primordiais do mundo.
3 comentários:
Participo de atividades de Extensão na UFRGS (paralelas ao "Curso de Letras"). Dentre elas, está o Ciclo de Cinema denominado: "Cinema e Sexualidade". Desenvolvido pela Faculdade de Psicologia em parceria com a FABICO. Frequento ambas desde 1992. Nunca fiquei limitados aos muros impostos pelo sistema formal de educação. É assim que procedo na luta contra a ignorância.
Esta é uma publicação importante do blog.
Neste sábado de Lua Nova, revisito a publicação, enquanto elaboro um outro texto também importante e significativo. Em breve, novidades, sobre.
Namastê.
23/05/2015
Dia de São Jorge.
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