Racismo
“O racismo é uma das coisas
mais
nojentas que se
pode
conhecer.
Mandela representou a luta
contra
essa deformação das relações
entre os
homens em todas as suas
possibilidades e facetas”.
Juremir Machado da Silva
A Escravidão não acabou. A persistência atordoante
do racismo é a maior prova desta triste (porém real) verdade.
Você leu Jornal Correio do Povo de Porto Alegre no
dia de hoje? Você leu a coluna do Juremir Machado da Silva publicada no Jornal
Correio do Povo de Porto Alegre no dia de hoje? Se não leu, por favor, leia.
Ele fala da Copa, de política, mas também de racismo, de Gilberto Freyre e das
relações sociais no Brasil.
Leia porque parece que é só jacquesja que insisti
neste assunto. E não é. O racismo, velado e reatualizado, persiste. E eu tenho
chamado a sua atenção aqui sobre esta temática. A consciência racial, leva-me a
trabalhar na defesa dos que muito já sofreram (e seguem sofrendo) pela práticas
constantes do etnocentrismo praticado pela classe dominante.
Esta página vem agora como uma nota introdutória do
trabalho que iniciei neste semestre com Gilberto Freyre. Decidi fazer um estudo
a partir da obra “Sobrados e Mucambos”, a fim de aprofundar o meu conhecimento
sobre as relações inter-étnicas no Brasil. É um tema muito atual e envolvente.
A Cidade de Viamão possui diversas comunidades
quilombolas. Tenho especial apresso pela comunidade do Beco dos Botinhas que
fica ali no limite geográfico entre Viamão e Alvorada. Na última oportunidade em
que visitei alguns amigos que vivem no lugar, surgiu o embrião de uma nova
possibilidade de pesquisa antropológica. Ainda é cedo para trazer aqui maiores
detalhes sobre este assunto. Contudo, fica o registro da necessidade de ver a diversidade
étnico-racial como uma das maiores riquezas do povo brasileiro. Darcy Ribeiro
na célebre obra denominada “O Povo Brasileiro” também desenvolveu uma tese
muito interessante a este respeito.
Mandela vive em cada gesto, em cada sonho, em cada
sopro da nação não branca guerreira que não para de lutar pela libertação
definitiva do seu povo. A resistência (mesmo que silenciosa) vai continuar. A
esperança de não haver mais agressões ao negro é o sustentáculo deste trabalho.
Obras
Reunidas de Gilberto Freyre
*
Introdução
à História da Sociedade Patriarcal no Brasil.
Sobrados e
Mucambos
Decadência
do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano.
*
3ª. Edição
Ilustrações
de Lula Cardoso Ayres, M. Bandeira, Carlos Leão e do Autor.
2º. Tomo
Livraria
José Olympio Editora
Rio de
Janeiro - 1961
Capítulo XI
Ascensão do
Bacharel e do Mulato*
páginas 573 a 631
É
impossível defrontar-se alguém com o Brasil de Dom Pedro I, de Dom Pedro II, da
Princesa Isabel, da campanha da Abolição, da propaganda da República por
doutores de pincenez, dos namoros de varanda de primeiro andar para a esquina
da rua, com a moça fazendo sinais de leque, de flor ou de lenço para o rapaz de
cartola e de sobrecasaca, sem atentar nestas duas grandes forças, novas e
triunfantes, as vezes reunidas numa só: o bacharel e o mulato.
Desde os
últimos tempos coloniais que o bacharel e o mulato vinham se constituindo em elementos
de diferenciação, dentro de uma sociedade rural e patriarcal que procurava
integrar-se pelo equilíbrio, e mais do que isso, pelo o que os sociólogos
modernos chamam acomodação, entre os dois grandes antagonismos: o senhor e o
escravo. A casa grande, completada pela senzala, representou entre nós,
verdadeira maravilha de acomodação que o antagonismo entre o sobrado e o
mucambo veio quebrar ou perturbar.
A
urbanização do império, a conseqüente diminuição de tanta casa-grande gorda, em
sobrado magro, mais tarde até em chalé esguio; a fragmentação de tanta senzala
em mucambaria, não já de negro fugido, no meio do mato grosso ou no alto do
morro agreste mas de negro pardo livre, dento da cidade – fenômeno dos 1830
brasileiros que se acentuou com a campanha da Abolição – tornou quase
impossível o equilíbrio antigo, da época de ascendência quase absoluta dos
senhores de escravos sobre todos os outros elementos da sociedade; sobre os
próprios vice-reis e sobre os próprios bispos. Maximiliano ainda alcançou essa
época quase feudal de organização social do Brasil; Nota 1 e o
Conde de Suzannet ainda sentiu de perto, no Império, essa feudalidade, Nota 2,
senão de substância, de forma.
A
valorização social começara a fazer-se em volta de outros elementos: em torno
da Europa, mas uma Europa burguesa, donde nos foram chegando novos estilos de
vida, contrários aos rurais e mesmo aos patriarcais: o chá, o governo de
gabinete, a cerveja inglesa, a botina Clark, o biscoito de lata. Também roupa
de homem menos colorida e mais cinzenta; o maior gosto pelo teatro, que foi
substituindo a igreja; pela carruagem de quatro rodas que foi substituindo o
cavalo ou o palanquim; pela e pelo chapéu-de-sol que foram
substituindo a espada de capitão ou de sargento-mor dos antigos senhores
rurais. E todos esses novos valores foram tornando-se as insígnias de mando de
uma nova aristocracia: a dos sobrados. De uma nova nobreza: a dos doutores e
bacharéis talvez mais que a dos negociantes ou industriais. De uma nova casta:
a de senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados para
tolerarem a vida rural na sua pureza rude.
Eram
tendências encarnada principalmente pelo bacharel, filho legítimo ou não do
senhor de engenho ou do fazendeiro, que voltava com novas idéias da Europa - de
Coimbra, de Montpellier, de Paris, da Inglaterra, da Alemanha - onde fora
estudar por influência ou lembrança de algum tio-padre mais liberal ou de algum
parente maçom mais cosmopolita.
Às vezes
eram rapazes da burguesia mais nova das cidades que se bacharelavam na Europa.
Filhos ou netos de "mascates". Valorizados pela educação européia,
voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de
senhores de terras. Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus
superiores pela melhor assimilação de valores europeus e pelo encanto
particular, aos olhos do outro sexo, que o híbrido, quando eugênico, parece
possuir como nenhum indivíduo de raça pura, voltavam os mestiços ou os mulatos
claros. Alguns deles filhos ilegítimos de grandes senhores brancos; e com a mão
pequena, o pé bonito, às vezes os lábios ou o nariz, dos pais fidalgos.
A ascensão
dos bacharéis brancos se fez rapidamente no meio político, em particular, como
no social, em geral. O começo do reinado da Pedro II é o que marca, entre
outras alterações na fisionomia brasileira: o começo do "romantismo
jurídico" no Brasil, até então governado mais pelo bom senso dos velhos
que pelo senso jurídico dos moços. Com Pedro I, tipo de filho de senhor de
engenho destabocado, quebrara-se já quase por completo, para o brasileiro, a
tradição ou a mística da idade respeitável. Mística ou tradição já
comprometida, como vimos, por alguns capitães-generais de vinte e tantos anos,
para cá enviados pela Metrópole, na era colonial, quase como um acinte ou uma
pirraça aos velhos poderosos da terra. Mas foi com Pedro II que a nova mística
- a do bacharel moço - como que se sistematizou, destruindo quase de todo a
antiga: a do capitão-mor velho.
Os
bacharéis e doutores que iam chegando de Coimbra, de Paris, da Alemanha, de
Montpellier, de Edimburgo, mais tarde os que
foram saindo de Olinda, de São Paulo, da Bahia, do Rio de Janeiro, a maior
parte deles formados em Direito e Medicina, alguns em Filosofia ou Matemática e
todos uns sofisticados, trazendo com o verdor brilhante dos vinte anos, as
últimas idéias inglesas e as ultimas modas francesas, vieram a acentuar, nos
pais patriarcal, por si só uma mística, como a sua inferioridade de primeiros
anos de mando, um meninote meio pedante presidindo com certo ar de
superioridade européia, gabinetes de velhos acaboclados e até amulatados, às
vezes matutos profundamente sensatos, mas sem nenhuma cultura francesa, apenas
a latina, aprendida a palmatória ou vara de marmelo, devia atrair, como atraiu,
nos novos bacharéis e doutores, não só a solidariedade da juventude, a que já
nos referimos, mas a solidariedade da cultura européia.
Porque ninguém foi mais nem mais doutor neste país que Dom Pedro II. Nem menos
indígena e mais europeu. Seu reinado foi o reinado dos Bacharéis.
Em suas
memórias recorda a página 91 Dom Romualdo de Seixas que “distinto Deputado,
hoje Senador do Império” propunha que se mandasse para o Pará, com o fim de
melhor ajustar ao sistema imperial aquela província indianóide do extremo
Norte, “carne, farinha e Bacharéis”. E comentava Dom Romualdo: “Pareceu com efeito
irrisório a medida; mas refletindo-se um pouco vê-se
que os dois primeiros socorros eram os mais próprios para contentar
os povos oprimidos de fome e miséria e o terceiro não menos valioso pela mágica
virtude que tem uma carta de Bacharel que transforma os que tem fortuna de alcançá-la
em homens enciclopédicos e aptos para tudo”.
De Dom Pedro II não será talvez exagero dizer-se
que sua confiança estava mais nos bacharéis que administrassem juridicamente as
províncias e distribuíssem corretamente a justiça, do que em socorros de carne
e farinha aos “povos oprimidos”. Socorros precários e efêmeros.
Mas o bacharel não apareceu no Brasil com Dom Pedro
II e à sombra das palmeiras imperiais plantadas por el-Rei seu avô. Já os
jesuítas tinham dado à colônia ainda sombreada de mato grosso – a terra inteira
para desbravar, índios nus quase dentro das igrejas, de olhos arregalados para
os padres que diziam missas, casavam e batizavam, cobras caindo do telhado por
cima das camas ou enroscando-se nas botas dos colonos – os primeiros bacharéis
e os primeiros arremedos de doutores ou mestres em arte. E nos séculos XVII e
XVIII, graças aos esforços dos padres, aos seus cursos de latim, Salvador já
reunira bacharéis formados nos pátios da Companhia, como Gregório de Matos e
seu irmão Euzébio, como Rocha Pita e Botelho de Oliveira. Alguns
aperfeiçoaram-se na Europa, é certo; mas na própria Bahia, e com os padres
velhos, é que quase todos fizeram os estudos de Humanidades.
Entretanto, é do século seguinte que data
verdadeiramente a ascensão do homem formado na vida política e social da
colônia. Gonzaga, Cláudio, os dois Alvarenga, Basílio da Gama marcam esse
prestígio mais acentuado do bacharel na sociedade na sociedade colonial; a
intervenção mais franca do letrado ou do clérigo na política. Marcam, ao mesmo
tempo, o triunfo político de outro elemento na vida brasileira – o homem fino
da cidade. E mais: a ascensão do brasileiro nato e até do mulato aos cargos
públicos e à aristocracia da toga.
Nesses bacharéis de Minas se faz, com efeito,
antecipar, a decadência do patriarcado rural, fenômeno que se tornaria tão
evidente no século XIX. Eles são da aristocracia dos sobrados: mas uma nova
aristocracia de sobrado diversa da semi-rural ou da comercial. Aristocracia de
toga e de beca.
Ainda que sentindo-se diferenciados da Europa ou da
Metrópole, onde estudaram, e querendo um Brasil independente e republicano, a
formação europeia lhes tirara o gosto pela natureza bruta e quente do trópico
substituindo-o por um naturalismo morno e apenas literário, à sombra de
mangueiras de sítio e entre macacos amansados pelos negros da casa e papagaios
que em vez de palavras tupis, repetiam frases latinas e até francesas
aprendidas já com esses novos senhores. De Morais do Dicionário, pelo menos, é
tradição que gostava de divertir-se ensinando latim e francês a papagaios.
Embora mulatos, alguns desses bacharéis, quando
escrevem verso para celebrar a paisagem dos trópicos, é sentindo dentro do
peito, inflamando-o, “pastores louros”, do doce lirismo rural da Europa:
“O Pastor louro que meu peito inflama
Dará novos alentos a meu verso”
diz
Alvarenga Peixoto no seu “Canto Genetlíaco”. Nota 3
Cláudio Manuel da Costa, de volta ao Brasil, depois
de cinco anos de Europa, não contém nem disfarça o desencanto diante da
paisagem tristonha. Não eram estas na verdade “as aventurosas praias de
Arcádia” onde “O Som das águas inspirava a harmonia dos versos”. Depois de
cinco anos de volutuosa formação intelectual, junto ao Mondego, de águas tão
azuis, só lhe restava aqui, à sombra dos cajueiros, à margem de rios de águas
barrentas e entre gente tão pervertida como a paisagem, pela “ambiciosa fadiga
de minerar a terra” “entregar-se ao ócio, sepultar-se na ignorância.
O mesmo desconsolo sentiram, depois de Cláudio
Manuel, uma série de brasileiros que tendo estudado fora do Brasil, aqui
experimentariam, de volta à casa, verdadeiro tormento: a difícil readaptação ao
meio, à paisagem, à casa, à própria família: “A desconsolação de não poder
subestabelecer aqui as delícias do Tejo, do Lima e do Mondego me faz entorpecer
o engenho dentro do meu berço” conclui melancolicamente o bacharel mineiro; e
pela sua boca parecem falar centenas de outros bacharéis e doutores que voltaram
formados da Europa, sonhando com Arcádias para encontrarem campos para eles
feios e tristes, a terra acinzentada pelas “queimadas” e devastada pela
mineração. Adolescentes que se europeizaram de tal modo e se sofisticaram de
tal maneira que o meio brasileiro, sobretudo o rural – menos europeu, mais
bruto – só lhes deu a princípio nojo, enjôo físico: aquela vontade de vomitar
aos olhos de que fala o pregador.
E sendo eles os mais moços, por conseguinte os mais
inclinados à libertinagem do corpo, como à da inteligência, tornaram-se,
entratanto, os censores dos mais velhos e dos exageros de vida sexual que aqui
substituíam, para os senhores dos
escravos, principalmente nos engenhos e nas fazendas, gostos mais finos,
preocupações mais intelectuais. De volta à colônia, um dos bacharéis mais
europeizados não esconde a repugnância que lhe causa ver as margens do riacho
que banha Vila Rica transformadas em lugares de bacanal; e o batuque africano
dançado não apenas nos mucambos de negros, mas nos sobrados grandes dos
brancos:
“Oh,
dança venturosa! Tu entravas
Nas
humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as
vis mulatas, apertando
Por
baixo do bandulho, a larga cinta,
Te
honravam c’os marotos e brejeiros,
Batendo
sobre o chão o pé descalço.
Agora já
consegues ter entrada
Nas
casas mais honestas e palácios!!! Nota 4
Entretanto esses desencantados quando deram para
patriotas foi para se tornarem nativistas exaltados, alguns indo até ao
martírio que nem estudantes de romance russo. Passado o enjôo dos primeiros
anos, os bacharéis ...
Transcrição
em Andamento
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