Texto apresentado na UFRGS
Vejam os senhores que mesmo sob a batuta dos "burocratas atrapalhados um e dois" eu mantinha a sobriedade intelectual e conclui o texto com lucidez e autenticidade expressa nas frases finais:"
"A antropologia como ciência objetiva é um fracasso. A objetividade em ciências sociais requerida por Durkheim nunca existiu".
Agora segue o texto na integra
Nhandeci
Diálogo com a Cultura
Guarani
Porto Isabel,
seis de abril de dois mil e quinze.
A manhã de outono iniciou nublada.
Houve um pouco de chuva na noite passada. Acordei e tomei o café em família,
como faço habitualmente. Compromisso acadêmico às quatorze horas: Diálogo com
Cultura Indígena Guarani-Mbyá – III Edição.
A
vida cotidiana na periferia de uma grande cidade é marcada pelos deslocamentos
necessários para a metrópole. Sou feliz porque não faço isto diariamente. O
transporte coletivo é precário e a viagem é penosa. Sempre sinto dor de cabeça
no retorno. Tenho uma sensibilidade extremamente aguçada para tudo. E as
agressões urbanas são muito fortes. Poluição do ar. Poluição sonora. Viver
neste contexto saturado. Esta é a marca registrada do homem urbano (adoecer).
Em função disso, faço o registro: não me é nada agradável viajar até a região
central de Porto Alegre.
A atividade vai acontecer no museu da
UFRGS. Portanto, para dialogar com o Cacique Vherá Poty terei que atravessar a
ponte do Arroio Sabão e tomar assento no Expresso Viamão. Foi este movimento
pendular (Porto Alegre – Santa Isabel) que trouxe a inspiração para criar o termo
“Porto Isabel”. Não posso me alongar sobre este assunto, pois a minha aldeia não
é o foco deste relato. O objetivo aqui é descrever a minha experiência neste
diálogo com a “cultura do outro”.
Os momentos que antecederam a chegada
no Museu da Universidade foram vividos dentro da biblioteca da Faculdade de
Educação. Estava lendo literatura. A minha frente uma colega lia um “texto
Xerox”. Perguntei: que horas são? Treze e quarenta foi a resposta. Desci.
Passei no protocolo geral da universidade. Encaminhei um documento e fui
caminhando em direção ao museu. Prédio muito bem cuidado e preservado, mas com
espaço físico restrito e acanhado. Penso que poderíamos ter um museu mais amplo
e participativo na nossa vida acadêmica. A universidade é tão grande. O Museu
da Universidade é tão pequeno.
Aproveitei a oportunidade e fiz uma
visita rápida à exposição no térreo antes de subir para a parte superior do prédio,
local onde ocorreria o referido evento acadêmico. Subi. Várias pessoas já
formavam fila para adentrar ao recinto. Cadastramento difícil, travado e demorado,
burocracia de praxe. Você é servidor? Não. Então passa aqui ao lado (menos de
trinta centímetros entre uma mesa e outra. Eram três). Nisso, surge dois
indivíduos com “pose de diretoria”. Senti um cheiro forte de sudorese demasiada.
A nossa ritualística, centrada na racionalidade (clássica), torna algo simples
em “engenhos altamente complexos”. Coisas simples como uma recepção, por
exemplo, torna-se algo complexo. O jovem cacique guarani vai falar sobre este
assunto, com muita propriedade: simplicidade. Esta é uma boa razão para ouvir o
que um representante de outra cultura tem para expor. Independente se o
indivíduo é antropólogo ou não. Neste caso, o evento não foi organizado para
especialistas em estudos de cultura indígena. Oficialmente trata-se de uma
atividade de capacitação profissional oferecida para servidores e alunos da
comunidade acadêmica da UFRGS. Estou dentro deste encontro que é preparatório
para mais outros dois momentos que ocorrerão posteriormente. O próximo na
aldeia (Terra indígena de Itapuã) e o fechamento previsto para acontecer em
terra de branco: museu universitário.
Após a intervenção da anfitriã, Cidara
Loguercio, servidora do museu, com uma lista interminável de agradecimentos (protocolares),
entra em cena o ator principal do encontro: Cacique Vherá Poty e seu
acompanhante, Osvaldo. Senti que não estavam sós. Tão logo recebeu o microfone
e iniciar uma fala meia engasgada, recebeu também uma bebida especial. Surgiu
uma bandeja com um recipiente contendo um determinado líquido que foi servido
em um copo especial (pelas mãos da assistência). Não posso determinar
exatamente o teor da referida bebida. Gostaria de ter entrado neste detalhe,
mas não foi possível perceber concretamente esta informação. Tenho um palpite
sobre esta cena que talvez não seja apenas mais um “detalhe”, pois o cacique
viria a fazer uso deste líquido em outros momentos do encontro. Do que eu vi,
cabe destacar que tanto a jarra, quanto o copo pareciam ser de material
argiloso. Após alguns goles, a voz melhorou e a “palestra” iniciou.
Semana Cultural é o nome dado para o
evento, segundo Vherá poty que parecia estar tranqüilo e falava pausadamente. Vestia
calça de brim e camiseta. Trazia na mão esquerda alguns adereços especiais:
anéis e bracelete de contas e sementes (cores escuras, tons de terra, algo
entre vermelho rubi e ocre). Andava com leveza no salão. Olhava para a platéia
e sorria. Identificou alguém na platéia com a camiseta do Internacional,
declarando-se colorado. No início falou um pouco sobre a sua trajetória de
vida, destacando que assumiu o posto de cacique com dezenove anos (hoje está
com vinte e sete anos de vida). Teceu impressões sobre o que é ser índio
(hoje). Dizia que não é necessário se fantasiar de índio para parecer sê-lo. Diz
que o cocar não um atributo genuinamente guarani. Fala que ninguém vai
encontrar índio pelado na aldeia, pois eles aderiram aos trajes do povo branco.
Mas que possuem diferenciais e o principal deles é o cachimbo e não o cocar
muito presente em outras tradições indígenas. Lembrou que, certa feita, em uma
fala pública, diante de uma platéia semelhante a esta, falou: “Se vocês se
fantasiam de índios, por que eu não posso me fantasiar de branco?” A sua
exposição corria tranqüila. Vez por outra formulava questões para a platéia:
“Quem aqui de vocês fala guarani?”. Obviamente, nenhum braço foi erguido. Abro
aqui um parêntese para confessar que as vezes penso nisso: o programa ciências
sem fronteiras deveria incluir as culturas indígenas no rol de possibilidades
para intercambio. Nesse caso, curso de línguas nativas como o guarani deveriam
ser disponibilizados para os estudantes universitários. Por que não? Eu não
tenho intenção de viajar para o exterior. A idéia de fazer intercambio na
França, por exemplo, não me fascina. Mas se houvesse oportunidade de visitar o
Parque do Xingu, por exemplo, seria candidato para viver esta experiência tão
significativa para um antropólogo que se debruça sobre o estudo dos não
brancos.
Na seqüência, o cacique toca no tema
resistência cultural, afirmando: “Não é pouca coisa ter ficado resistindo este
tempo todo”. Afirmou que a resistência do seu povo na sua cultura original se
deu graças à espiritualidade preservada pelos guaranis. Sobre este mesmo tema,
mais adiante Vherá Poty constrói uma crítica bem interessante a “religião oficial”
no Brasil: Cultura Católica. Destacou que respeitava todas as práticas
religiosas alheias a sua própria, inclusive os preceitos católicos. Mas deixou
claro que não aprecia o culto católico. Demonstrou que os princípios da igreja
apostólica romana são muito diferentes dos creditados pelo povo guarani. Eu
gostei bastante deste momento do encontro. Foi muito sóbrio, sério e honesto ao
abordar tema tão espinhoso. O cacique voltaria a abordar o mesmo tema
religiosidade, quando provocado por um questionamento elaborado por um homem
branco que estava na platéia. Foi então
que surgiu a palavra simplicidade.
O Cacique Vherá Poty dizia que a
palavra sinônima para religiosidade é simplicidade. Afirmou que o seu povo vive
a religiosidade para além dos templos (como o vivenciamos na nossa cultura).
Destacou que o modo de vida simples, ligado as práticas da natureza é a marca
registrada da religiosidade do seu povo. A noção de Unidade foi elencada por
diversas vezes e tem relação com esta simplicidade. O exemplo utilizado para
ilustrar este preceito foi aquele que envolve o ritual de definição do nome das
crianças. Disse que na sua cultura ocorre processo bastante distinto do que
ocorre com o branco no momento de dar nomes aos filhos: “Vocês (brancos) estão
preocupados com o nome das crianças desde antes delas nascerem. Isto não ocorre
conosco. Somente após, aproximadamente, um ano de vida é que vamos definir o
nome dos pequenos. Isto acontece em processo ritual onde a divindade revela
qual o nome deve ser dado ao novo ser. Não é o pai ou a mãe que escolhe”.
Na prática, segundo o meu ponto de
vista, este processo ritual de nomeação dos indígenas é bem mais complexo do
que pode parecer. Digo isto para basear um sentimento pessoal diante desta “declarada
simplicidade”. Aqui simplicidade é análoga a essencialidade e antagônica a
precariedade. Assim sendo, trata-se de uma “simplicidade” extremamente potente,
capaz de realizar aquilo que o branco denomina de “milagres”. Poderia até
avançar um pouco mais sobre esta temática, pois sou “praticante de
sensibilidade essencial”. Contudo, não sou índio e o desfecho pode soar
confuso. A palavra-chave é xamanismo urbano e o tema “as ervas que perderam o
seu poder”.
A leitura da obra denominada
,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, auxilia no entendimento desta questão. Penso
que esta participação na “Semana Cultural” é uma oportunidade para uma reflexão.
Vou aqui usar uma metáfora: “olhar no espelho” (antes de olhar o que está
diante dos meus Olhos). Antes de fazer um esforço para ver algo novo, diferente
e até exótico, neste caso a cultura guarani, é interessante também fazer uma
parada diante de um “espelho” e ver a imagem refletida: a nossa própria
cultura. Que cultura é essa? De onde ela vem? Quais os valores que ditam as
regras? O que faço? Por que faço? Desde quanto faço? Poderia fazer diferente?
Gostaria de retomar a fala de Poty, no que se refere ao uso do cachimbo.
O tabaco é uma erva que perdeu o seu
poder original. O cigarro vendido no comércio, oriundo de processo
industrializado é diferente do fumo em corda artesanal que Vherá Poty citou na
sua fala. Ele foi questionado na temática de saúde e falou sobre o hábito de
fumar, destacando que fumava apenas cachimbo. Gostaria de poder aprofundar esta
análise sobre “as ervas que perderam o seu poder original”. No entanto, não
irei fazê-lo, pois este texto é apenas um pequeno relato do encontro no museu.
Para concluir, debruço-me sobre algo que esteve presente neste encontro e que
também merece uma consideração, mesmo que breve: tensão.
A
tensão oriunda do contato inter-étnico. Não é algo provocado intencionalmente
pelas partes que dialogam. Trata-se uma força potencial que liga partes de um
todo dividido em pedaços. Senti esta tensão presente o tempo todo. São
diferenças que se comunicam, mas não se aceitam em processos de emglobação.
Aceito o outro na sua diferença, mas ele não é um dos meus. Ele é um índio e eu
um homem branco. Parece que era alguma coisa deste tipo presente o tempo todo.
Alteridades. Vou tentar ilustrar para ficar mais claro o que afirmo. O Cacique
questionou na sua fala a maneira do branco se organizar: “Eu acho estranho essa
coisa de microfone. Eu pego o microfone e vocês olham para onde eu vou. Na
cultura de vocês, qualquer um que pega o microfone e faz isto se torna o centro
das atenções e vira palestrante. Se eu tivesse lá na aldeia seria diferente.
Estaria sentado. Todos em uma roda, tomando chimarrão”. Foi interessante que
ele chegou a propor uma espécie de “exercício”. Em dado momento da sua fala,
deslocou-se para o fundo do salão com o microfone sem fio na mão e se divertiu
ao ver todo a platéia em movimento de cabeça, tentando acompanhá-lo
visualmente. Ou seja, de alguma forma, o cacique se divertiu com toda esta
situação. Brincou e demonstrou que somos limitados e pouco criativos. Afinal de
contas, se a proposta era fazer um diálogo verdadeiro (e não um monólogo), de
fato, a organização do evento poderia ter proposto algo diferente.
A
fala de Vherá Poty foi feita de improviso. Ele não trazia nas mãos um roteiro
pré-definido. Não houve utilização de esquema ou organograma feito em Power
point. Não havia “ponto no ouvido” ou coisa que o valha. Somente a presença da
assistência (Osvaldo sentado e calado. A bebida mágica e as alteridades) foi
suficiente para que o encontro fosse um sucesso. Após ter falado por, cerca de
cinqüenta minutos, o cacique propôs que a platéia se manifestasse com perguntas
ou considerações afirmativas de cunho pessoal.
A
tensão foi bem presente em alguns momentos de elaboração de questões pela
platéia. Religiosidade, por exemplo, foi um tema tenso. Parecia que as pessoas
desconfiavam da resposta que ainda não havia sido elaborada. Simplicidade foi a
resposta repetida. Simplicidade. E eu que estava entendendo o verso todo e
também o seu reverso sentia vontade de ajudar o cacique a explicar que
simplicidade é esta que intriga e deixa perplexo quem não entende o âmago da
questão. Houve um momento que uma colega chegou a ser ríspida com um
questionamento sobre a temática gênero. Primeiro perguntou sobre a divisão de
tarefas entre homens e mulheres na aldeia. Vherá Poty respondeu. A mesma pessoa
voltou a perguntar se havia a possibilidade de uma mulher vir a ser cacique da
tribo. Vherá respondeu que sim. Ela não parou por aí e questionou sobre o parto
(nascimento) das crianças. Ocorre na aldeia? Como as mulheres se preparam? É
parto natural? Chegou ao ponto de dizer: Bom, são questões do universo feminino
e se você não quiser responder, não responda. Enfim, eu teria outras perguntas
para fazer sobre as mulheres, mas não sei, acho que não vou fazê-lo. Clima
tenso.
E
a minha questão? É claro que eu gostaria de ter apresentado uma questão para o
cacique. Mas não tive coragem. Seria por
ainda mais lenha na fogueira. O Clima não estava propício. Senti nos meus pares
a busca incessante por uma objetividade que não existe na cosmovisão guarani. A
liderança guarani que esteve ali demonstrou ser um “ser sensível”. Ele não foi
escolhido ao acaso para esta função. O processo ritual que escolheu Vherá Poty
para ocupar a posição de cacique foi “preciso” e colocou a pessoa certa no
lugar devido. Nhandecy. Esta teria sido a minha intervenção. Eu não iria
elaborar questão. Gostaria apenas de ter pronunciado esta palavra. Falar e
aguardar que as alteridades inspirassem algo para ser trazido a público. Não o
fiz objetivamente. Contudo, creio que a vontade de fazê-lo provoca uma onda de
sentimento que vai de coração para coração. Creio também que o encontro das
subjetividades (sejam elas de brancos ou não brancos) não pode ser reduzido e objetivado
por letra morta de “descrição densa” a La Geetrz. A antropologia como ciência
objetiva é um fracasso. A objetividade em ciências sociais requerida por Durkheim
nunca existiu.
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